"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Vampiro no Divã! Hein?!

Por Sérgio Janma, para o Clube do Conto

-... pois é, doutor, sei que só é possível viajar para o futuro...
- Hein?! Fale mais sobre isso.
- É o que diz o físico-filósofo Ludwig Boltzmann que, numa das maiores realizações da história da física, mostrou que a flecha do tempo é um fenômeno estatístico. “A probabilidade de o ancião rejuvenescer é essencialmente zero, enquanto que a de um jovem envelhecer é essencialmente 1”. Então, a razão de eu vir aqui ao seu divã tem esse propósito: Reviver, experienciar, pelos menos no nível das idéias, os meus melhores momentos de vida passados. O passado que, para nós vampiros, é mais digno do que os dias de hoje, considerando nossa mórbida natureza. Bons séculos aqueles! Hoje, não! No cinema, somos retratados como doces vampiros em filmes românticos. Patético! Isso afronta nossa dignidade, nocauteando-nos na lona suja da desonra. Vampiros não são todos iguais. Temos estirpe! Eu mesmo... Sou nobre, da linhagem dos Toreadores. Verdadeiros adoradores do belo. Somos artistas, porque em nós a interação com a natureza é a parte humana que se sobrepõe à de quirópteros como condição de vida. Sabia que cheguei a ser o poeta Lord Byron? Conhecido freqüentador das festas na Londres do século XIX. Mas, admito, essa natureza humana em nós é a nossa fraqueza. Tornamo-nos vulneráveis às cobiças dos que têm poder sobre a vida e morte, os Ventrue, classe dos vampiros que controlam impérios fabulosos e ganham muita fortuna à custa dos fracos mortais que não são capazes de resistir à sua principal disciplina: A Dominação. Ainda bem que há diversidade étnica-racial também entre nós vampiros. Não somos todos do mesmo sangue.
- Hein?!
- Se, infelizmente, existem os Ventrue, chamados de “Sangue Azul”, em contrapartida existem os Brujah que, por defenderem a liberdade acima de tudo, são chamados pelo seu povo de anarquistas. Eles infringem regras, saem do padrão religioso e moral dessa sociedade hipócrita. Quem é o dominador sempre estigmatiza a todos os que fogem ao seu controle e os contesta, sentenciando-os como sendo os perigosos causadores da infelicidade humana. É assim mesmo, doutor, nós vampiros, e toda a escória de “personagens maus”, somos transformados por eles em justificativas para a incapacidade que têm em ser felizes. Tornam-nos destruidores, devastadores da espécie humana. E quem nos vê com simpatia, fica propenso a cometer “pecados” e a “perder a alma”.
-???
- Vejo que seus olhos me perguntam sobre o quê realmente interessa a todos vocês, meros mortais humanos: E o sangue chupado das veias alheias? A origem da minha necessidade nutritiva-alimentar está na natureza dos vampiros. Porém, o fato que deflagrou o meu complexo sugador foi detectado, se é que o doutor irá lembrar, em nossas recorrentes seções hipnóticas-regressivas. Revivi o instante em que me apartava de minha progenitora, quando se concretizou o meu nascimento. O quando do ocorrido não sei precisar. Só consigo visualizar uma aldeia na região Eslávica. O certo é que era um momento pré-histórico da humanidade. Era o momento de eu passar a ser. Instintivamente, comprimi minha boca em um dos mamilos de minha mãe, pontudos feitos dedos, atrás de algo que preenchesse o meu indigesto vazio estomacal. Nada X nada! Insisti. Não desisti. Algo tinha que sair de dentro daqueles seios fartos. Fartos de quê? Farta de minha insaciedade, aquela mulher, atormentada por uma depressão maior do que o seu amor maternal, empurra minha cabeça para trás, desplugando minha boca do seu mamilo em sangue. Foi aí que aconteceu. O sangue-salgado-proteico... É. Em minhas macias gengivas já tinham brotados dois dentes. Como? Se se torna vampiro só depois de morrer, diria o doutor. A única explicação é a que devo ter morrido e, de algum modo, revivido vampiro ainda durante a gestação.
- Fale mais sobre o sangue.
- O divino sanguinolento líquido, viscoso e morno, é a mais completa tradução da vida animal. Há vida só quando ele trafega intravenoso pelos canais do corpo, irrigando-o. Organicamente, o sangue carrega alimento e lixo pelas células. É uma rede, ao mesmo tempo, de alimento e de esgoto. Pra mim, ele é acima de tudo o combustível que ainda me mantém mais humano do que zumbi.
- Sua hora se aproxima. Tem algo a acrescentar? Hein?!
- Tenho sim, doutor. Sei que o senhor, além de ateu, é judeu, mas preciso lhe contar de como me furtei de ser preso dentro do corpo de um porco.
- Hein?! Fale mais sobre isso.
-Vamos lá, recordar é viver: Foi na Galiléia, no tempo da divisão histórica da humanidade. Por todos os dias refazia minhas energias, após bem usá-las à noite, no cemitério da terra dos gadarenos, no outro lado do lago. Convinha-me a fúria de um homem que também encontrava no cemitério o seu refúgio, tornando seguro para mim estar ali. Ele assustava e afastava as pessoas. Nada o podia atar. Nem correntes, tampouco camisas-de-força o subjugava. Corria noite e dia por entre os sepulcros e feria-se com pedras. O povo tinha fé que nele habitava uma legião de demônios. Fé alimentada por ele quando se apresentava pelo nome Legião, por dizer serem muitos a possuírem seu corpo. Sabendo disso, o tal de Jesus, tido como o cristo, embestou de atravessar um mar de água doce para atormentá-lo. O homem do cemitério, ou os que estavam nele, foi (ram) ao seu encontro gritando: “Que tens a ver conosco, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar antes do tempo?” 
Fiquei besta. 
Esse cara e mais os caras dentro dele se sentiram incomodados na pretensa relação, haja vista conflituosa, que tinham com esse Jesus! E o “... atormentar antes do tempo...” Que tempo? Que tormento? Até então, eu pensava que “atormentar” os outros era papel nosso, dos vampiros, demônios, lobisomens, bruxas, hereges excomungados, suicidas insepúlcros, pecadores sem arrependimento, adúlteros, mulheres com TPM, a cantora do Calypso (loira do banheiro), sertanejos e fankeiros, assassinos sem causa, bichos-papões, Sacis-Pererês e um e/ou outro boi-tatá. Agora, que também o filho de deus se passasse por ator protagonista nesse papel de atormentador, ah! , isso para mim era novidade!
Fiquei ali parado, ouvindo os colóquios daqueles arquiinimigos tão íntimos. Aos poucos, vi que as coisas por ali esquentaram ainda mais e a minha vida secular estava por um triz. Bastaria o tal cristo olhar para os lados, me ver, e babau... “hasta la vista, vampiro!” Gelou em mim o sangue que eu acabara de beber na boêmia madrugada. Doutor, confesso que, pela primeira vez em séculos de momentos de vida, naquele momento em particular, senti medo. E olha que tradicionalmente temos medo apenas de alho, pelas alterações que provoca no nosso sangue, de estacas feitas de madeiras resinosas com poderes curativos aos humanos (que em nós o efeito é mortal!) e de cruz. Esta, não tanto por ser um símbolo religioso, mas mais pelo quanto agride nossa saúde se feita de prata ou com as tais madeiras resinosas. A prata causa em nós algo como uma reação alérgica.
O homem que enfrentava e metia medo em toda uma legião devia ser mesmo Todo-Poderoso! Na derradeira tréplica dos demônios que ali parlamentavam, houve a rendição deles, e quase também minha, em forma de súplica: “Se nos expulsas, envia-nos para aquela manada de porcos.” Hein?! Taí! Instinto de sobrevivência! Acendeu uma lâmpada na minha moringa esquentando e atiçando as idéias. Como o doutor deve saber, o meu avatar é um morcego. Demônios em porcos; vampiros em morcegos. Amém. Assim foi feito. Tornei-me um morcego na escuridão, invisível entre as catacumbas.
Empurrados pela força sinistra do olhar de Jesus, mais de dois mil demônios foram rechear as entranhas de uma manada de porcos. Os suínos que, não tendo espíritos bons, tampouco maus, não souberam lidar com a novidade incorporada em si, precipitaram-se por um abismo para morrerem no lago. Quanto a mim, para que não chorasse lágrimas de sangue, bati as ratazanas asas de quiróptero e hoje estou aqui, deitado, contando esta minha história de há dois mil anos. 
- Acabou seu tempo. “Hasta la vista, vampiro!”
- Hein?! Já?! No meu gogó, não, doutor! Minha hora ainda não acabou!


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