- Canto de chamada para a Roda de Poesia-
Hoje as músicas não são de hoje. São antigas.
Aquelas músicas latinas: “Guantanamera”,
“Los Estudiantes”... um verdadeiro recital com músicas da alma. Músicas
cantadas pela voz de Mercedes Sosa. Aquela gorda forte com cara de índia
(talvez por ser índia) que canta forte. Voz gorda. Sua voz é a forte expressão
de sua personalidade. Forte. Um corpo gordo que dança leve. Penso no peso deste
corpo que dá a ideia de conforto de espírito.
Tenho que escrever rapidamente tudo o que vejo e penso porque o tempo é curto.
As luzes irão apagar-se. O recital poético logo irá começar.
Duas vozes disputam entre si o tom dominante. O volume convence mais? Desculpas
seguidas de desculpas: - Não
fui lá porque pintou uma janta em MINHA casa com MEU namorado... o “Cavalo”,
lembra dele?
Mas não é o que ouço o que mais
me importa (até política pintou!), mas sim o que vejo: Coxas! Seios! Coxas de
uma meia-morena... tostadas pelo sol. Razoáveis carnes espessas. E os seios...
seios de uma branca-gringa-sensual cobertos apenas com uma camiseta branca de
fina transparência. Por baixo... seios soltos. Naturais. Leitosamente naturais!
Seios! Seios! Eles me fascinam... de qualquer forma... de qualquer jeito.
Flácidos como duas geleias, ou os outros seios rijos da puberdade.
O recital demora. Ainda chega
gente. E minha roupa é diferente.
A luz clara, aberta, dá lugar à
cerrada escuridão negra. E, desflorescendo (abrindo espaços), desciam as luzes
multicoloridas sobre o palco ornamentado pelo contrarregra com três decorativas
cadeiras. O essencial no palco. E minha roupa é diferente. Os recitantes chegam
sem camisas e sentam, sem camisas, nas decorativas cadeiras que o contrarregra
colocou no palco pra que acreditássemos ter ali algum cenário.
Estou de terno-e-gravata.
Estou sentado em uma cadeira da plateia de
terno-e-gravata quando o guitarista, sentado em uma cadeira, sem cantar, no
canto do palco começa a tocar guitarra. Ele toca como se estivesse tocando
tamborim-encouraçado-com-pele-de-gato. Batucando um
samba-frevo-reggae-blues-bossanova-bolero-tango-milonga. Som rolando feito
rock-and-roll. Ele é ótimo!..
Aqui... jazz.
Agora o poeta levanta. O
poeta-ator. Traz um cravo branco nos cabelos-louros-longos-encaracolados como
as pétalas do branco cravo nos cabelos-louros-longos-encaracolados... como as
pétalas do branco cravo nos
cabelos-louros-longos-encaracolados-como-as-pétalas. E o guitarista, também com
cabelos, porém negro-encaracolados, continua a sambar um rock na guitarra. Os
livres negros cabelos da cabeça sobre a guitarra presa pelas mãos do
guitarista, acordando com carícias os acordes no braço da guitarra. Cabelos na
cabeça e mãos no braço do instrumento!
Começa o recital. – Jacaré não tem pescoço/Formiga não
tem coceira/Careço fazer da vida mais que uma simples brincadeira – O ator-poeta, um baixinho sem
camisas e de calças brancas, cabelos-negros-compridos-sem-caracóis e de pés
descalços, responde ao primeiro verso do primeiro alto poeta-ator, sem camisas
e de pés descalços. E minha roupa é diferente. Estou de terno-e-gravata. O
segundo, o ator-poeta, acende um Hollywood, oferece ao primeiro, o poeta-ator,
e continua a recitar, repetindo o que o primeiro, o poeta-ator, recitou.
Na continuação dos poemas, reconheço alguns lugares
de Porto Alegre. Mercado Público, Lomba do Pinheiro, Rua da Praia, Gasômetro...
Vieram, então, os poemas de candomblé: - Oixiguidum,
Oixiguidum, Oixiguidum, dum, dum... índio chupando seios tenros de índia gorda. – Áhh... os seios!
Depois interromperam e se
distribuíram cópias do roteiro do recital. O poeta-ator havia se esquecido de
distribuí-las antes. Enquanto isso, o guitarista toca com displicência. (Por
que insisto em escrever guitarrista com um R só?!).
Os recitantes esqueceram-se dos
poemas? – Os poemas são sonhos
que carrego comigo. Os poemas são palavras tontas que carrego comigo... / O poeta que morreu escreveu um
bilhete à humanidade. – Um
lembrete. Post-script.
O segundo, o ator-poeta, declama
com os braços abertos crucificados no ar. E minha roupa é diferente. Estou de
terno-e-gravata. O guitarista continua a tocar, assim como continuo a escrever
“guitarista”. E veio um palavrão! E veio Porto Alegre a ser novamente citada: - Casas erguidas sobre os túmulos. – Poema baixo-astral: - Tanta angústia na pele da cidade.
De repente, a surpresa: o
primeiro, o poeta-ator, chama pelo nome alguns integrantes do grupo teatral de
nome Pra Qtê Nome.
Propõe-se recitar um poema do roteiro daquele recital poético. Os recitantes
vão para a plateia e todos do grande grupo da plateia vão para o palco (a plateia
fica quase vazia) e recitam, lendo o poema. Jogral ginasiano. – Falta de ensaio... fomos pegos de
surpresa... Desculpas e mais
desculpas, seguidas de desculpas.
Agora os recitantes voltam ao
palco pra recitarem com toucas de lã. Não sem antes fazerem a devida e justa
propaganda de quem às confeccionou que, por mera coincidência, é atriz do grupo Pra Qtê Nome. Toucas de lã para
os poemas saírem quentinhos da cabeça?
O ator-poeta recita poemas e o
poeta-ator caminha passos sem camisas pelo palco. Ambos de toucas. Uma touca
cada um. Toucas diferentes entre si, uma da outra. E minha roupa é diferente.
Estou de terno-e-gravata. Sem touca como o guitarista sem touca que toca rock,
toca blues. O guitarista toca blues com espírito e o público o acompanha com
palmas. Enquanto os recitantes antropofagicamente dançam o blues com
p-e-l-v-e-s-s-i-d-a-d-e. Recitam os conceitos do amor. Incitam o público a
acompanhá-los com palmas no ritmo do blues. E em meio a outro poema se falou em
seios. Meu maior tesão! Seios pequenos... os do poema. Mas o outro recitante, o
ator-poeta-malicioso, interrompe o poeta-ator-puro e diz: - Não tão pequenos assim! – Seios! De terno-e-gravata concordo.
Uiva o solo da guitarra.
Aplausos com as mãos da mesma
emoção.
Vieram com cheiro de indignação e
sangue os poemas impertinentes dos latinos. Depois de um poema revolucionário
de Federico Garcia Lorca, entra uma inesperada bicha desesperada e declama
histérica, com muitos gestos requebra-estereotipados, um poema de amor de
Lorca. Ao terminar, abraça-se emocionado no primeiro, o poeta-ator, que dos
dois recitantes é o mais bonito.
Os dois recitantes levam a plateia
a assoviar feito passarinho. Foi uma passarada a cantar em diversos idiomas e
tons florestais e eu... passarim, passo a assoviar vento sonoro. Sopro. Ânima
macunaimando. E minha roupa é diferente. Estou de terno-e-gravata.
Vieram também os poemas infantis.
Alguns até que eram pra crianças. Ao final do recital, os recitantes, o poeta,
o ator e o músico passam o chapéu. Nada mais justo, já que o ator vive do
teatro, o músico da música... o poeta vive de viver a vida.
O recital terminou, tendo a
continuidade dos poemas. Recitais! Recitais!
E minha roupa é diferente. Estou
de terno-e-gravata, terno.
Saio do anfiteatro com meu cravo
na mão, para depois cravá-lo nos cabelos. Saio do anfiteatro diferente.
Estranhamente diferente. Convertido pela vertente dos versos, saio poeta.
Sérgio Janma – 11/85
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