"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Espelhos Quebrados Não Morrem




.no escuro não existO .apagO .luz e imagem é a minha essênciA .só me é possível a vida em imagens através da luZ .não sou só vidro com uma fina camada de aço grudado às minhas costas, emoldurado por madeiras polvilhadas de um ouro velhO .tenho imaterial constituição gerando a minha extraordinária magiA .todos os espelhos são mágicoS .refletem o inverso, mentem sobre as formas dos corpos e das faces, enganando-os quanto a idade e a aparência que têM
.nada que existe, criado, foi pra ser visto, por isso os espelhos são necessários na sua função de enganaR

Acordo sem acordar. Entre o sono e a vigília, há apenas forças no meu corpo pra abrir os olhos e ver, enfrentando-me, outro corpo no espelho da parede em frente à minha cama. Nele há refletido esse sonolento corpo imóvel, inerte duplo do meu. Carne branca, pêlos, muitos pêlos, uma mata de pêlos bicolores pelo corpo inteiro. Pretos-e-brancos-brancos-e-pretos. Nos espelhos espalhados pela casa, não quero ver mais o meu rosto com a barba por fazer. Encaro somente as minhas tatuagens que, mais do que o rosto, revelam minha verdadeira identidade.
A cada manhã acordo para seguir o mesmo roteiro há muito por mim escrito. Alongamentos de braços e dedos, enquanto penso uma contagem de 40 segundos de duração pra cada esticar dos meus músculos em busca da vida corporal necessária para seguir o meu dia. Mas hoje não. É domingo. Preguiça até pra me espreguiçar. Não me importa em nada que dia venha a ser hoje. Em licença médica nenhum dia é útil. É o que o espelho me faz lembrar, denunciando à minha consciência essas pernas enfaixadas. Tal Lázaro, ataduras podres silenciam por completo os já inaudíveis sons dos movimentos das minhas pernas. Ata, amordaça, amarra, imobiliza. Ataduras que deixam as pernas duras, garantindo-me que eu dure por mais um tempo em pé. Imolo aos deuses apenas meu sangue.
Arte que articula os movimentos. Levanto, enfim. Já em vigília, sigo pela casa cumprindo coisas que se fazem necessárias. Sinto-me vigiado. Há uma presença, além da minha, pesando o ar desta casa... não me afeta.
Moro só.
            Abro janelas e portas pra sair o cheiro sufocante das fumaças festivas das fogueiras da noite de São João no nordeste.
            Dia calmo. Sol e chuva se intercalam como se combinassem dividir o mesmo espaço entre o céu e o solo. A chuva é boa pra uns, o sol pra outros, e assim o dia fica mais bonito. Também estou mais calmo que nos dias anteriores. A paz me vem pelos medicamentos, não me lembrando mais das suas idas-e-vindas como condição da depressão. Apenas lembro, pra começar com coragem meu novo dia, o que pensa de mim uma amiga... parece um lago quieto. Vejo hoje tudo pelos olhos da razão e não mais pela violência contida. Sinto a harmonia em meu universo particular.
            Não mais me masturbo. Libido em baixa. Só tenho sonhos que não se fixam na memória, mas que ainda me trazem ereção. Minha memória, ou talvez a sua falta, serve agora somente pra aquietar os dramas.
            Enquanto a chaleira ainda não ferve a água para o ato mecânico e contínuo de passar café, bebo em jejum um copo de água do filtro e como uma castanha do Pará. E já sabendo que o dia me acontecerá em ordem, tenho o controle do ritmo de meu coração e mente. Minhas ações se desencadeiam em arquitetados planos distintos.
            Num dia como hoje, igual à ontem, há pouca coisa a fazer. Um livro pra terminar de ler, após sete arrastados meses de empréstimo. Pedir o almoço por telefone por não poder caminhar e sair de casa. Fazer operações bancárias pela internet e, sem muita paciência, navegar nas redes sociais, sempre off-line, só pelo tempo necessário para as dores pesarem e o meu corpo pedir descanso.
            Embromo assim o dia com permissivas futilidades. Elas não pesam em minha anestesiada consciência e me aliviam a lembrança de que preciso escrever o que é preciso.
            Este meu cotidiano é a máscara viva que uso. É o patuá protegendo o que em mim não quer morrer. Se eu matá-lo, exponho-me a minha própria morte.
            Sou Raí Cordeiro, escritor sem escritos relevantes. Meus documentos trazem outro nome, bem mais longo e comum, visto haver tantos homônimos.

...vives a vida através do espelho, por nele refletir as conversas mudas, bocas, caras, roupas adequadas, ensaios de seduçãO .sexO .pensas que tens algo muito importante pra dizeres aos outros, à humanidadE .és alguém dentro de uma casa, casulo, fazendo coisas sem importância, quase quieto, inofensivo, mas atordoando o que há forA
.te mandaram cresceres e foi o que fizeste no decorrer de um longo tempo, deixando aos poucos de veres o que havia dentro do teu espelho, quando ainda eras criança, único espaço em que dele te apropriavas e  podias ser lúdicO 

Outro dia pra acordar. Acordo. Hoje o espelho me mostra um dos curativos jazente no frio piso cerâmico do meu quarto. Mais uma vez postergo os alongamentos dos meus membros superiores, assim como o banho não tomado ontem, programado pra essa tarde.
            Café feito como repetição da mesma ação cênica dos incontáveis dias anteriores. 
            Amanhã a Galega virá. A mulher que faz quinzenalmente a faxina e também as compras da semana no mercadinho mais próximo. Hoje nada a fazer a não ser deixar o tempo se cumprir no meu cotidiano. Refazer e refazer os dias sempre iguais.
            Só há em mim a ação de pensar, ou tentar pensar, naquele passado onde penso existir mais vida. Não encontro passado que valha lembrar. Sem futuro, tornei-me rei coroado pela solidão de estar aqui e agora. Só existe o agora entre o passado e o futuro.
            Ar pesando à volta, deixando os meus movimentos mais lentos. Do caos que provoquei vem outro movimento. Mas não agora, não aqui.
            No almoço, sirvo-me de vinho tinto seco e brindo à vida e à morte como se elas fossem uma pessoa, única.
Escrevo, então, para não enlouquecer. O que escrevo me ultrapassa... ultraleve me fará voar com outras asas, em direção, intenção, ao meu único e perfeito dia. No entanto, enquanto escrevo e me debato feito lagarta nesta casa, o cotidiano medíocre me conduz ao dia seguinte.

.sou espelho e mintO .mostro apenas as distorcidas imagens do que chamas real, a outra verdade revertida pelo reflexo dos teus contrasteS ?é um sonhO ?o que é sonho e o que é reaL ?o real está no sonhO .o irreal que o engana, contendo-o em um mundo que se prolifera de coisas e pessoas dentro dele e ao meu redor, inchandO ?ele  existE .os mundos não conseguem viver sem miM .refletindo, faço crer que as imagens tua, delas e de todos, serem a verdade, única, tendo-a como sua propriedade exclusivA :deixo a dúvidA ?as imagens existem apenas como reflexos, sem serem reaiS ?como sabes que as outras pessoas existeM ?serás sÓ .mortos-vivos sem extrema unçãO .os espelhos quebrados fragmentam os teus pensamentos, sentimentoS
.tudo que é duplo é apenas um só seR .inversamente como num espelho que só faz veres as duplicidades dos contrasteS .opostos o bom e o maU .a parte boa sofre por ser boA .é aquela que busca a felicidadE .não pode achar, na sua infrutífera procura, o que não existE .desistE .a desilusão faz com que ela queira ser a parte mÁ .o teu eu bom e o teu eu mau se amam, mas se rejeitaM .o bom é quem quer matar o maU . aí o bom torna-se maldosO .o mau só está no seu papel, tornando-se indesejadO .é quem te faz ter pesadelos e te acorda quando sonha os sonhos de felicidade realizadoS .desejas segregar o eu mau à margem do convívio humano, condenando-o a estar eternamente preso em uma ilha solitária de rotas perdidaS
.a meia idade quer tornar os homens adolescenteS .não é por que chegaste nesta idade da inutilidade economicamente produtiva que pensas e sentes da mesma forma a solidãO !mesmo com os anestésicos, tens vivo o tesão no teu corpo, eu vejO .entope-te de remédios que só servem pra embotar tua alma, volatizar teu vaziO ?o que fazes pra melhorares o gosto da vidA !queres um corpo colado ao teu, dentro um do outro e não forA !o homem ama o seu próprio paU .o seu feminino, o eu por ele não reconhecido, é o seu melhor amigO .o feminino no homem dimensiona a relação do seu macho com a sua fêmeA .é o feminino inconsciente dele que busca o encontro com o seu masculino, fazendo-o um homem por completO .inteiro e plenO

Acordo, como em todas as madrugadas, por pesadelos que minha memória esconde atrás da sua providencial cortina do esquecimento. Lanço-me da cama ao banheiro e urino um turvo líquido por demais amarelo-escuro e fedorento. Vou até a cozinha me arrastando e bebo num só gole um copo cheio de água, ordenhada do filtro de barro.
Chove.
Não me olho mais nos espelhos. Cansei de ser Narciso a se enganar ao olhar nas águas um rosto que nada mais é do que o seu contrário refletido, o avesso. Agora não mais mantenho a saúde corporal de um jovem e me falta paciência para a juventude. Estou em idade de buscar o real. O avesso-do-avesso-do-avesso, como já disse um compositor famoso em sua famosa música. Na verdade, busquei o real por todas as minhas idades. Desde a não vivenciada infância, busquei as verdades. Mas as verdades podem não ser reais. Todas as pessoas têm suas próprias verdades.
Entendi, então, com a idade avançando, que o real ao qual buscava não é sinônimo de verdade. A verdade é a vida que cada um acredita ter e viver. O real é outra coisa. É o que integra o meu mundo interior, tanto quanto consigo ser íntegro. Interagir com o mundo exterior é outra história. E quando me torno sombra daquelas pessoas que escolho por admiração, aí sou apenas ação-e-reação-reação-e-ação. Convivência com o outro é andar na corda bamba. Se quero manter boas as relações sociais e amorosas tenho que jogar o jogo das previsões do outro jogador. Supor antecipadamente suas verdadeiras intenções para, nesse espaço chamado relacionamento, desarmar-lhe o bote que me subjugaria. Mas na espera do reconhecimento da vitória, quando ela chega, frustra. Não passa apenas de um tolo xeque-mate. E o sentimento é o de não ser importante. Não sei como e nem quando me tornaria importante na vida do outro. Outro que não o escolhi e que, de tantos, nunca o encontrei. É sobre isso que preciso escrever... vida e morte.
Prefiro, então, o meu mundo, para não ser preciso utilizar-me de qualquer forma de poder. Minha realidade, suspeito existir só dentro de mim, indiferente aos outros; aos outros mundos. Sequer, conheço inteiramente o meu mundo; dois mundos tão distintos; eu olhando o externo, chamando-o de você; o eu externo a me olhar, chamando-me de você. Dá a mim a sensação de eu não ser eu e nem ele ser ele. Sensação de não existirem nem pessoas e coisas e nem de eu estar aqui, vivo. É tudo um sonho?
No meu universo solitário invento pessoas irreais, refletidas em um espelho mágico. Um pequeno universo. Há a teoria dos físicos: o grande Universo é um só e finito; o que nele vemos contido e nos dá a ideia de infinito é só seu reflexo. Saber que até mesmo o Universo terá o seu fim, consola a dor que o medo da morte me causa. Esse Universo, tão misterioso pra humanidade, também tem seus espelhos refletindo as irreais imagens que enganam: estrelas que já há milhões de anos deixaram de existir e, ainda assim, mantêm suas cintilâncias. Nossos corpos, organismos e mentes são réplicas do grande e finito Universo. Sou também seu reflexo. O que existe nele existe em mim. E saber que até essa Natureza Universal, criadora e criatura, irá morrer...
Eu já quis morrer! Mas como os meus pensamentos não seguem em linha reta, agora não estou mais querendo o que é provável, talvez inevitável: o encontro em um atropelo, antes da hora e local marcado, com o que me é destinado. O que chamo de duelo da minha vida com a minha morte, de espíritos desarmados. Sem a contagem de passos, sem trapaças e sem armas. Nenhuma testemunha, mesmo que haja a assistência de alguma gente curiosa. A morte não pode ser vista e muito menos vivida por outros, a não ser pelos dois protagonistas posicionados nessa encruzilhada dos encontros marcados. Morrer é sair de cena. O último olhar será para o pedaço do espelho quebrado que irei carregar comigo. Reflexo: vulto que volta, antes de cair na densa sombra. Ser esquecido. Passar a ser mais outra estrela morta com a energia da memória durando só por mais um pouco. A morte desfaz os encantos da vida, em elos e duelos com os espelhos. Aí os pensamentos ferem. Quebrei-me juntamente com o meu espelho e agora me multiplico como as estrelas estilhaçadas pelo Universo.
Querer o suicídio não é necessariamente querer morrer; é querer outra vida diferente. Vida após o caos.
Não sei se alguém já disse o que acabo de pensar e dizer. Todos pensam e quase sempre dizem o que pensam de uma forma ou de outra, já que há tantas formas de expressão e tantas mentes criativas. Como disse Aristóteles, o ser se diz de tantas maneiras. É preciso resgatar o valor das palavras. Até mesmo os que pensam em linha reta têm sempre os seus pensamentos propensos a se cruzarem com os dos outros. Caminhar em linha reta é pra quem tem objetivos. Eu não mais os tenho, perdi-me deles. Reafirmo: meus pensamentos não seguem uma linha reta com medo de serem pegos pelo trem do destino da minha própria história. A permanente tentativa de me esquivar da vida e da morte, ambas tão particularmente a mesma entidade. Acumular energia para a fuga é engordar o corpo e a alma.
Penso nisso enquanto rodo a colher na xícara, admirando a homogênea tez do café, achando-a hoje mais preta do que nos outros dias. A sincronia nas danças da minha mão direita, do rodar da pequena colher e do café a redemoinhar na porcelana esmaltada, faz-me ver o belo e crer que só ele existe. Para não cair no canto das sereias, quebro biscoitos e os jogo dentro do café quente para poder comê-los amolecidos. Mastigo-os devagar até cansar de mim.

.não precisas de nenhuma carta de despedida pra te justificareS .justificastes por tua casa e por cada objeto nela contido, a mesa de madeira maçaranduba, a mesma madeira da estante repleta de livros, alguns deles ainda aguardando tua leitura, guarda-roupas e cabides suspendendo as roupas, as mesmas de que tu suspendeste o uso, a sapateira que esconde sapatos pisados e rotos, a cozinha pequena com seus utensílios raramente usados, as paredes com objetos decorativos, como os relógios e os espelhoS .casa que revela quem tu éS .a vida e a morte são tua moradA
.enquanto andas pela casa a cumprires os teus pequenos atos cotidianos, singelos, eu daqui de dentro ofereço o grande sentido possível para tua vida quietA .em mim todas as tuas ações e intenções ficam mais profundaS .dentro de mim está o teu legado que ganhou maior significado pela minha narrativa da tua história não contadA .em mim está o teu contrário por ti ainda não vividO :te convidO vem pra dentro, e-terno menino, entra no espelho e joga com alicE seu enigmático jogO  

Outro dia, acordo. Mais um dia-e-mais-outro-e-outro-mais.
Ainda chove.
Nos tempos em que saía de casa, andava pelas ruas e, vez em quando, as pessoas esbarravam em mim por simplesmente não me enxergarem. Elas nem me olhavam pra não terem que me ver. Tornei-me invisível como a perna que falta ao Saci. Mas, insisto com a coragem de andar em linhas tortas! Tenho ainda minhas duas pernas a recuperar pra continuar a caminhada, ziguezagueando pra todos os lados, trazendo em mente a esperança que, talvez naquele lado onde haja a possibilidade do tropeço, encontrarei o meu destino desejado. A ponta do meu arco-íris preto e branco sem tesouros.
Desisti de esperar que as coisas sejam definitivas como a felicidade e o amor. Não há felicidade, tampouco o seu contrário. O bom vem à luz porque o mau sai com sua sombra. Para haver algo, tem-se que provocar o nada.
Preciso morrer. Isto se faz necessário a qualquer escritor para que se vendam mais os seus livros. Meus biógrafos diriam o quanto fui genial, autêntico e, naturalmente, incompreendido pela crítica e o público de leitores que não leram a minha curta, porém significativa obra. Só esquecerão, quando referirem-se ao meu nome, de darem a ele o seu real sentido e significado. Raí Cordeiro, simplesmente. Propositalmente fictício para que carregasse em si a maior de todas as contradições da tortuosa condição humana.


Sérgio Janma