"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

PESARDELESONHADOUVIVIDO

                A sala estava preparada, não sei se para o jantar ou se para o velório. O quadro era dantesco: garfos e facas ladeando os dois desmaiados pratos, de bruços, nas cabeceiras da longa mesa. A mesa estava vestida para a festa com uma toalha branca, lisa e longa, caindo-lhe como cascata até a metade das suas quatro grossas pernas-de-pau.
                Na grande travessa ao centro da mesa uma linda mulher dorme o seu sono de morte. Ao redor, distribuindo-se como decoração de mau gosto, estão dois ovos estrelados, separados em paralelo, a fitarem o teto. No meio da travessa uma aranha amarronzada e abaixo uma lingüiça, lembrando uma língua para fora da boca quando se faz careta. Em outra travessa clássica, havia três globos oculares humanos: um inteiro e os outros dois pela metade com vermes delgados saindo-lhes de dentro.
                Sentado a uma das cabeceiras, abaixo do quadro da Santa Ceia pregado na parede, está um velho sem dentes, amordaçado por um lenço, “ban-daid” na cabeça, dois lóbulos cabeludos em orelhas-dungas, barba por fazer, nariz esborrachado, olhos esbugalhados espirrando lágrimas de crocodilo por sobre o prato, um esparadrapo podre colado no pescoço fino e a mão esquerda estendendo para frente uma dentadura incompleta. Arrastava-se debaixo da mesa um verme com olhos de serpente e uma crista de galo, boca aberta com os dentes pingando saliva venenosa, língua bifurcada para fora, esperando como cão pelos restos de comida.
                Na outra cabeceira, sentada de costas, uma mulher branca, nua, com a cabeça virada ao contrário. Ao seu lado a servi-la como escravo, de pé, um homem negro, nu, vestindo-se apenas com um chapéu de feltro, igual aos dos cantores de tango.
                Em uma das paredes da sala, está afixada a cabeça de um homem de óculos redondos, seguindo a moda Gandhi.  As vezes sério, outras sorridente, com olhos fechados e orelhas pequenas. E, ao invés de empalhada, a cabeça está viva! Brotara em seu rosto e cabeça, pernas femininas crescidas iguais à barba e cabelos, esvoaçantes. E quando as pernas das mulheres na cabeça se cruzam e descruza, a boca dele sorri.
                Estão a passearem displicentemente pelo resto da casa as galinhas, cachorros, gatos e cavalos. Na porta, impacientes, estão cinco soldados e três operários, vestindo suas cabeças com capacetes para se protegerem de um eventual fim-de-mundo
Da varanda eu olho de rabo-de-olho para o rabo dela, a morta, dela (e bela), deitada de bruços sobre a longa mesa de jatobá. No rosto da mortadela o olho esquerdo pisca para mim e a sua boca me sorri... fria e apetitosa como os alimentos que já morreram.


Sérgio Janma
                                                                                                                                                                                           

Nenhum comentário:

Postar um comentário