Sempre quis ir a
um terreiro de Candomblé. Sabe aquele sonho de criança? Minha família carola-católica-apostólica-paraibana tentava-me pôr medo: demônios possuem os corpos
das pessoas, tudo dá pra trás nas vidas dessas pessoas que ficam amarradas pelo
diabo e mais outras afirmações desse tipo. Mas tudo o que me põe medo me atrai.
Tenho como objetivo de vida desmistificar os mistérios do que é oculto pra
torná-los cultos.
Até
que esse dia chegou. Meu amigo Dartanhã, na época marido, tinha uma colega de
trabalho que teria sua iniciação na religião afro-brasileira: A festa
de Saída de Iaô. A noite de
sábado três vezes adiada finalmente chegou. Fomos nós três: meu marido, eu e
minha vontade ansiosa por sua realização.
Antes
de prosseguir com esta narrativa devo adiantar que não sou religiosa, porém não
sou ateia. Contraditório? Não. Acredito na vida além dos corpos. Vida maior,
total, universal. Pra mim, somos partes desta vida além de nós. Uma nano-célula no organismo vivo do Universo.
Chegamos,
guiados pelo croqui em mãos e informações dos passantes daquelas ruas do
subúrbio. Onde é o terreiro do pai Dodô? Impressione-me já na entrada.
Esculturas de orixás variados. Expressões assustadoras. Tudo o que eu queria:
ser surpreendida pelo o que via. Lá dentro, calor, incensos, fumaças de
defumações, cigarros e cigarrilhas. Meu companheiro nessa aventura que não
suporta calor, incensos, fumaças de defumações, cigarros e cigarrilhas... saia
e voltava do recinto. Eu não me incomodava com esse ambiente. Faz parte do
ritual, é da cultura vinda do outro lado do oceano.
Premeditando
o ritual que viria pelos toques dos ogãs nos atabaques e macumbas, lembrei-me
dos versos do poeta-brincante Mário Pirata “... toda alma quando solta/ toda
alma quando livre/ é percussiva.” A liberdade me vinha aos poucos através dos
sorrisos de bem-vindas, abraços, reconhecimento sem nunca ter se conhecido,
indumentárias multicoloridas e monocolores. Cores representativas dos orixás,
explicou-me meu marido. Não me importava. Só queria aquilo. Esse ambiente onde
cabem todos. Ninguém ali traz consigo seu sobrenome, profissão, nem condição
social, sexual, ideológica, política... são apenas pessoas na sua condição
humana imperfeita.
Minha
alma teve mais liberdade quando o Pai Dodô, mulato velho de estatura mediana,
vestido de branco da cabeça aos pés, deu início aos trabalhos com rezas
católicas, demonstrando o sincretismo religioso daquela sessão. Acompanhado de
seu braço direito, ajudante direto, creio, com uma toga que parecida ter mais
cores que o próprio arco-íris. Traziam atrás deles, uma dança circular e
cânticos, ora em português cabloco, ora em orumbá.
Saiu
de dentro de um pequeno quarto, que mais tarde fiquei sabendo se chamar roncó,
a colega de meu marido com vestido vermelho de cigana, cigarrilha e uma taça de
champanhe nas mãos. Era a personificação da cigana Jurema, uma das pombas-gira.
Séria e compenetrada, a cigana puxava o cortejo com muita alegria nos cânticos
de letras maliciosas e de dúbio sentido. Tudo era uma grande brincadeira. Mulheres
e homens mudavam de repente de expressão e simplesmente caiam e eram levantados
pelos mestres e voltavam-se cavalos de alguma entidade do mundo dos espíritos.
Dartanhã achava assustador, teatro dos horrores, disse, eu achava uma bela e
significativa representação antropológica. Jurema gritava palavras chulas,
próprias do mundano ambiente de cabarés. A todos ofereceu do seu champanhe e
cigarrinha. Sem mais beber e nunca ter fumado, bebi e fumei. Dartanhã,
decepcionado comigo, retira-se do recinto resentido. Não me importo. Queria ver
onde aquilo tudo iria dar.
Intervalo.
Teria a segunda sessão para outra iniciação da agora também minha amiga. Uns
vinte minutos depois, veio ela, ou melhor, ele, o seu Zé Pilintra. Vestido de
fraque e cartola sobre a cabeça da mulher-cavalo de coques nos cabelos. Essa
entidade é um preto cachaceiro, dado a farra. Bebia cachaça Jureminha
(homenagem à cigana?) e fumava charuto. Abraçava a todos com afeto, soprava
fumaça em toda a cabeça de quem era a vez e perguntava o que queria lhe
perguntar. Bebi da sua cachaça e fumei do seu charuto sem tragar. Ele foi com
minha cara e me tirou pra dançar.
Habeas corpus. Ganhei
liberdade de corpo e alma, dançando e gargalhando com o meu novo amigo, o malandro
Zé Pilintra.
Meia-noite. Hora
do táxi-abóbora chamado por meu marido chegar. Chegou. Demorei nas despedidas
do apaixonado Pilintra. Voltamos pra casa discutindo com discórdia o ambiente
visitado. Só sei que a partir dessa noite, nada foi como era antes.
Separamo-nos porque isso se tornou o ônus imposto pelo o que diferentemente
experimentamos. A separação aconteceu após nossa experiência com os mistérios
do culto afro; para o bem ou para o mal, como apregoa minha família, não
saberei dizer.
Sérgio Janma –
12.05.2012