Por Sérgio
Janma, para o Clube do Conto
Na minha pré-adolescência comecei a usar
óculos. Eram senhores óculos! Grandes, de acrílico e de cor preta. Ganhei-os de
uma tia que era funcionária do INPS (era início da década 70). Na verdade, não
foi ela quem me presenteou com tal artigo, apenas aproveitou-se de um dos
programas sociais deste instituto para contribuinte de baixa renda. Então, eram
óculos de “graça” custeados pelo dinheiro público. Material de baixo custo,
grosso e grotesco, sem nenhuma noção de estética moderna que isso é frescura só
de grifes e, vá lá, minha também. Óculos sem nenhum look. Bem, o fato é que
vestindo meus olhos com esse trambolho, pareceria mais estar com uma máscara se
não fosse pelas grossas lentes corretoras da minha alta miopia. Não havia
nenhuma sombra de dúvidas pra ninguém que o meu caso era de cegueira parcial
por trás de dois fundos de garrafas.
Mas minha vaidade era ainda mais aguda que a miopia. Essa vaidade,
própria daquela idade, fora terrivelmente agredida, ultrajada, vilipendiada por
aquele par de óculos. Enfrentei minha adolescência, atravessando-a como um
Ulisses cego atravessando seus oceanos. Sobrevivi aos naufrágios da puberdade.
Mas minha autoestima nocauteada dormia pesada sob a sola dos meus pés.
Continuei vivo para só mais tarde, já pré-adulto, comprar o meu primeiro par de
lentes de contato. Costumo dizer, digo, pensar que na minha vida existe o antes
e o depois das tais gelatinosas lentes de contato. Eu tratava essas lentes como
às duas meninas dos meus olhos. Dava-lhes banho-maria na água fervente, além de
usar um xampu apropriado para equilibrar o seu Ph. Colocava-os para dormir dentro
dos seus respectivos estojos como se eles fossem suas caminhas.
Um oftalmologista, também cirurgião, acompanhava os meus problemas oculares,
entre eles a miopia com seu crescimento galopante, inflamações de todo tipo,
alergias, secura e tal. O tal fez-me, então, uma proposta puramente financeira,
visto ser muito rentável para ele. Qual seja: disse ele que aqui na
Paraíba não se faz cirurgia para corrigir miopia. Portanto, se eu quisesse
ver-me livre dessa deformação no globo ocular que me perseguia durante décadas,
teria que viajar até a cidade de Natal e fazer, com ele, a tal intervenção
cirúrgica. Juntando os preços da tal cirurgia, clínica, equipe médica que teria
que se deslocar até o estado vizinho, minha própria viagem, estadias minhas e
dos médicos, dava uns módicos vinte mil reais.
Mentalmente dei-lhe uma banana. Da minha boca saiu apenas um educado
não, obrigado.
O mesmo profissional da saúde dos olhos dos outros, estranhou o fato de
a minha miopia estar aumentando drasticamente em pouco tempo: em apenas dois
meses passou de nove graus e meio para dez e meio. Além das minhas queixas de
enxergar tudo nuveado. Então, aventou a possibilidade de os meus olhos terem
sido acometidos por cataratas.
O excesso de zelo com meus olhos me fez vítima de mim mesmo, isto é, o
uso excessivo de colírios anti-inflamatórios com corticoide não mataram minhas
meninas dos olhos, mas foi forte o bastante para destruir seus cristalinos.
Perdi minha visão clara das coisas, do mundo fora das minhas órbitas. Cataratas
precipitaram-se sobre meus dois olhos. Dez graus e meio de miopia em cada olho
foi o caro preço que tive que pagar pelo pecado da vaidade. Mais caro ainda foi
o alto preço que paguei pela cirurgia para a remoção dos meus cristalinos
opacos, implantando duas perfeitas lentes que os substituíram artificialmente.
Eu quis as melhores, importadas, é claro.
Se minha tia, hoje já aposentada, estivesse ainda trabalhando no seu INSS,
solícita me ofereceria essas cirurgias de cataratas de graça. Evidentemente, as
lentes não seriam tão sofisticadas quanto as importadas.
Cirurgia feita no primeiro olho, notícia boa, ainda que tardia. Conseguimos
zerar a miopia neste olho. Esperamos obter o mesmo sucesso com o outro olho.
Quê?! Como assim? É que nesse tipo de cirurgia invasiva, aproveita-se para
fazer uma ou duas pequenas incisões no fundo do olho para encurtar a trajetória
da linha da retina... você só vai ficar com a visão curta. Mas o grau de
presbiopia será muito pequeno, coisa que o uso de óculos para ler de perto não
possa resolver.
Não usar óculos a maior parte do dia era o sonho de toda minha vida. Minha
adolescência veio-me à tona da consciência. Toda a timidez
advinda do uso daqueles óculos... o bullying nas palavras pronunciadas pelos
coleguinhas. Olha lá o ceguinho! Que “fundo de garrafa” mais feio! Azarar uma
menina?! Improvável. Veja a situação: se ela caísse na lábia que eu não tinha,
viria o beijo. Como? Se sem os óculos eu não achava nem minha própria boca!
Deu-me uma vontade de beijar o cirurgião-oftálmico. Não o fiz. Ele salvou minha
autoestima, dando-me muito mais felicidade terrena, mas a lembrança da sua
proposta anterior, indecente, de ir à cidade de Natal... uns vinte mil reais...
Mafioso! Mercenário da saúde alheia! Filho da puta!
Só hoje me dei conta do hilário de toda essa história. Se eu não tivesse
exagerado na dose de colírios com corticoide, provocando as cataratas ópticas,
não teriam as cirurgias. Será que, inconscientemente, busquei as cataratas que
acabariam de vez com minha miopia? O certo é que agora vejo que as cataratas
curaram minha visão.
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