"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

CEP: 91.450-290

CEP: 91.450-290
(ou uma carta para Fernando no 20º aniversário de sua ausência)

                                                    "Que liberdade em teu esquecimento!
                                                      Que independência firme na tua morte. "
(Mário de Andrade)

Na esquina da nossa rua, onde passava o ônibus antes de mudar seu itinerário, premiaram o passado, descerrando teu nome diante ao Hino Nacional, religiosos, jogadores de futebol, sambistas e vereadores do município. Não sabiam mais do que liam:                     
"RUA
FERNANDO SOUTO DA SILVA
“Desenhista Arquitetônico e Evangelista”
(Profissões que teu corpo e alma exerceram).
Rompendo paredes dos meus sonhos, embora evitando recordações maquiadas, quero agora descerrar a morte que te encobre. Vestir de eternidade a beleza da tua alma viva. Deixando que pela minha mão escrevas ensaios espirituais. Psicografando pra mim o eterno ensaio da vida que tua morte definiu: a frustração que gera a arte, arrebentando o amanhã no trilhar do acaso.
Eras claro demais, igual ao teu sorriso lançando luz na tristeza (feito luz jogada nos olhos dos morcegos). Teus sorrisos e gargalhadas grandes procuro imitar sem ensaios. (Ou será que procuro imitar tua alegria?). Foi o teu sorriso cheio de vida que a vida me deixou, num sorriso eterno crescendo nos meus lábios. Desenho artisticamente traçado pelas mãos da mesma emoção, perpetuando esta arte que transcendeu gerações. Arte ordenada pela dor fecundada na minha alma. Poesia que ultrapassa o Gás Sagrado. Sorriso que rejuvenesce com a beleza da felicidade maior que a perfeição.
Homem de sete instrumentos e uma cabeça de poeta. Homem de construir casas iguais a nossa: coqueiro em frente. Livros em armários embutidos nas paredes da sala. Arquitetura eclética demais para início dos Anos Sessenta: com sótão e tudo o mais: terraço e passarelas estreladas de pedrinhas-granitinas. Obra pacienciosa de um artesão.
Construção mais bela foi o anfiteatro de tua vida. Arquitetura de tua alma.
Engolindo visões do passado, lembro que não jogavas bola comigo porque não sabias. Quem tentou me ensinar foi teu irmão, mais moço, meu tio. Dentro do pequeno quarto, bola parada embaixo da cama e meus chutes em suas canelas. Insistência das brincadeiras de criança.
Teu irmão, meu tio, mais moço, envelheceu.
Meu irmão, teu filho, mais velho, casou.
Quando chegavas do trabalho, lá estava eu escondidamente te esperando. Fingias me procurar por todos os cantos da nossa casa de muitos cantos. Já sabias que eu estava debaixo da cama, porque fora lá que eu estivera ontem, anteontem... Pensando em ter te enganado, sentia-me crescer mais um tanto. Podendo logo chegar a ser grande feito tua grandeza em tua baixa estatura. Teu ar de "heureca!” quando me jogava desastrosamente em teus braços. No abraço o eco de nossa alegria chegava aos outros nos cantos da casa de muitos cantos. Vivíamos na inocência que fizera chover sonhos na nossa pobreza. (Por ser a ingenuidade a brincadeira dos felizes?) Era a idade do meu carinho correndo mais do que a vida.
Aniversariando meus quatros anos, esteve lá em casa, a ranzinza Maria, tua irmã, minha tia, mais velha. E com ela, "seu" Major... Na época eu não sabia bem quem ele era, mas gostava do velhote que me trazia frutas. E foi com uma de suas laranjas que, querendo come-la inteira, engasguei-me. Assustei-me com as fortes palmadas de minha mãe em minhas costas. Mãos pesadas de tua mulher, minha mãe, morena-nervosamente-desesperada.
A todo instante eu queria ser teu companheiro. Até mesmo quando construíste o armário da cozinha: lápis grosso descansando em tua orelha. Adorno rude de marceneiro. Formão, esquadro, martelo...batidas: um, dois, três, ritmadas. Lembrando pente de metralhadora, vinham de canto a canto os pregos presos por tua boca. E o canto no embalar do serrote... assovio de violino. Cada vez que precisavas de uma ferramenta eu já a tinha guardado. Aumentavam, com isso, tuas horas de serviço. Quando pronto o armário, minha mãe, tua mulher, nervosamente-morena-apaixonada, abraçou-te e te beijou inteiramente grata. Gratidão retida na transparência de minhas pequeninas retinas fotógrafas. Cena revelada na minha obscura memória. Lembrança que se eterniza, armando-me de vida.
Tecendo saudades, lembro que eu era criança quando, por algumas vezes, em um fogo-de-chão fritei cascas de cebolas em latinhas de sardinhas.
Eu jogava peladas com os guris do Morro Santana no "campinho das latas". Era chamado de "Garrincha" até começar a usar aquelas ortopédicas botinhas de ferro.
Tu, poeta Fernando, eras dado à boemia.
Desde São Gabriel, fazia tuas serenatas às morenas "pêlo-duro" da cidade. Entravas nas casas, conquistando toda a família com teu extenso anedotário e repentes de piadas vindas no improviso. Eras felicidade messiânica, sem anunciação. Apaixonado, compunhas canções e poemas... Eu soube daquele poema que fizeste pra uma mulher mais velha do que tua adolescência. Será que era também morena?
Tuas mulheres tinham a mesma cor das minhas: morenas tal e qual minha mãe e tua afilhada que tomei por irmã. Força da cor dos nossos desejos. Ciclo de destinos em unidade.
Anasalando cantavas músicas do Roberto, imitando-o num deboche. Só fui te dar razão na minha pós-adolescência, quando não vi mais o porquê da minha coleção de fios de cabelos tirados das minhas namoradas.
Quando moravas vizinho ao cemitério da Azenha, antes de pensares que um dia eu seria presença viva em tua vida, pintavas letras nos túmulos alheios para sobreviver.
Sob a marchinha de carnaval "Estrela Dalva", compôs a letra do hino de teu clube, o Independente. Sem ter  a pretensão de um dia ser velado sob sua bandeira aos solenes acordes da mesma marcha em andamento fúnebre.
De repente, eu era órfão.
Embora, filho de uma alma tão especial... o que me fez crer ser eu o cristo, ou coisa parecida.
Mas morreste, Fernando.
E foi durante o carnaval em Santa Maria, no Brasil-Sul. No mundo inteiro era carnaval! Festa dionisíaca. Celebração-corpo-ritualística ao bêbado-deus-baco.
Era a noite da "Máscara Negra":
"Quanto riso,
óh, quanta alegria...
...a mesma máscara negra
esconde o teu rosto.
Eu quero matar a saudade!"
Nunca mais dançarias... dançarei. A máscara do carnaval de agora será ainda negra? Há só a gargalhada da máscara em meu rosto aflito por alegria.
Minha lágrima tem teu nome:
Fernando.                                                                                                                                                
Morreste ouvindo o grito das buzinas dos carros a dançarem apressados, incitados pelo ritmo frenético das músicas de carnaval no salão em frente a nossa nova casa.
Era uma horrível noite de lua bonita. Feitiçaria da vida? Alarme desta lua enamorada surpreendida pela dor. Exatidão da morte. Alma-beat em pedaços soltos no espaço. Vazio badalando vazio.  Morte sem sangue. Sangue apenas sugerido na névoa molhada. Perfeição da morte enfrentando uma tempestade: relâmpagos dos "flasches" e os raios vindos de olhos estranhos. Curiosidade das ruas invadindo nossa casa. Noite que previa o futuro, antecipando-se aos meus passos.
Destino de pele leprosa. Preço caro das minhas lágrimas... Apenas fagulhas de lembranças em minha cabeça. Cerração do esquecimento.
Não és, pra mim, este necrosado-corpo-embalsamado!
Tua morte se deu num acidentado-descuido. Minha vida tem sido um descuidado-acidente, embriagada por imprevistos e ressacada de improvisos. Inquietação que corrói-e-moe meu cérebro. Dor rolando, cansada das feridas, até as lágrimas serem guardadas pelos cílios, como se pendurasse segredos no corpo. Futuro egoísta que me escraviza.
Acompanhou-te o corpo e a alma de tua mulher, minha mãe, morena-nervosamente-esquartejada, casada com tua vida-e-morte.
Depois... foi-se tua mãe Jaci. Lua. Era leonina.
Partiram também, em cada momento distinto, os teus irmãos. Primeiro foi o Eduardo que ficou ao teu lado naquela fotografia: violão calçado em tua barriga e boca aberta sem som do teu irmão. Dedilhavas amores em lá na sétima com maior sorriso.
Partiu depois o tio "Gordo"...
"...mindinho, seu vizinho, pai-de-todos, fura bolo, mata piolho..." era um dos tantos versos que ele me ensinou. Trovador de improviso, também gostava de cantar repentes. Fez-me crer que todo mundo tem um tio "Gordo".
Teve o Lauro que se deixou morrer.
Restaram os teus irmãos de nomes tupis: Inara, Peri... vivendo sem barulhos.
Eras, Fernando, o Grande na Família Souto:
Alma modelo. Completa.
Grandeza incansável.
Hoje minha alma  apresenta uma forma ecleticamente mitológica (como de quem nasce de incêndios) com uma necessidade novamente-antiga de complementação. Não me contentando apenas com a companhia dos espelhos, resgato a vida de meu pai, através da alegria no sorriso-poesia que hoje escrevo nos meus lábios.


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