"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Reflexões em Frente ao Espelho


Na sofisticação dos meus sentimentos cegos pra os reflexos falsos dos espelhos, só o escrever não me deixa morrer. - Sérgio Janma -

(inspirado no texto da peça antes da coisa toda começar, do Armazém CIA de Teatro)

Tudo bem, nunca suportei o lá fora, mesmo. Não gosto de me sentir um pedaço de carne na multidão.
(Trecho da peça antes da coisa toda começar)


O espelho é só um vidro com uma fina camada de aço grudado às suas costas. Isto que é tão simples gera a sua extraordinária magia. Todos os espelhos são mágicos. Refletem o nosso inverso, mentem sobre as formas de nossos corpos e faces, enganando-nos quanto à idade que temos. Cansei de ser Narciso a se enganar ao olhar nas águas um rosto que nada mais é do que o seu contrário refletido em avesso. Nada que existe, criado, foi pra ser visto, por isso o espelho é necessário na sua função de enganar. Estou em idade de buscar o real. O avesso do avesso, como já disse Caetano. Na verdade, busquei-o por todas as minhas idades. Desde a não vivenciada infância, busquei as verdades reais. Mas as verdades podem não ser reais. Todas as pessoas têm suas próprias verdades. Viver a vida através do espelho, por nele refletir as conversas mudas, caras, bocas, roupas adequadas, ensaios de sedução... sexo. Todos pensam que têm algo muito importante pra dizer ao outro, à humanidade. Entendi, então, com a idade avançando, que o real ao qual buscava não é sinônimo de verdade. A verdade é a vida que cada um acredita ter e viver. O real é outra coisa. É o que integra o nosso mundo interior, tanto quanto conseguirmos ser íntegros. Interagir com o mundo exterior é outra história. E quando nos tornamos sombras daquelas pessoas que escolhemos... Aí somos apenas ação-e-reação-reação-e-ação. Convivência com o outro é andar na corda bamba. Quem quer manter boas as relações sociais e amorosas tem que jogar o jogo das previsões do outro jogador. Supor antecipadamente suas verdadeiras intenções para, nesse espaço chamado relacionamento, desarmar-lhe o bote que os subjugariam ao seu domínio. Mas na espera do reconhecimento da vitória, quando ela chega, frustra. Não passa apenas de um tolo cheque-mate. E o sentimento é de não sermos importantes. No entanto, não sabemos como e nem quando nos tornamos importantes na vida dos outros. Outros que não os escolhemos e que, de tantos, nunca os encontramos.
Eu não sou assim. Para não ser preciso me utilizar de qualquer forma de poder, prefiro o meu mundo, a minha realidade que suspeito existir só dentro de mim, indiferente aos outros; aos outros mundos. E eu, sequer, conheço inteiramente o meu mundo; dois mundos tão distintos. Eu olhando o externo, chamando-o de você; o eu dele a me olhar, chamando-me de você. Dá a mim a sensação de eu não ser eu e nem eles serem eles. Sensação de não existirem e nem de eu estar aqui, vivo. É tudo um sonho?
Os espelhos mentem sobre nós, mostrando-nos apenas as nossas distorcidas imagens, a outra verdade revertida pelo reflexo dos nossos contrastes. É um sonho? O que é sonho e o que é real? O real está no sonho? O irreal que nos engana, contendo-nos em um mundo proliferando-se de coisas e pessoas dentro dele e ao meu redor, inchado. Elas existem? Como as coisas conseguem viver sem mim? Existem, talvez, apenas no meu e nos espelhos delas, refletindo um mundo pra cada coisa e pessoa. Meu espelho me faz crer que as imagens nele, minhas e de todos, ser a verdade, tendo-a como propriedade exclusiva. Ele deixa a dúvida de apenas existirmos como reflexos, sem sermos reais. Mortos-vivos... sem extrema unção. Como sei que as outras pessoas existem? Serei só? Espelhos quebrados a fragmentarem os mesmos pensamentos, sentimentos...
Tudo que é duplo é apenas um só ser. Inversamente como num espelho, que só me faz ver as duplicidades dos contrastes. Opostos o bom e o mau. A parte boa sofre por ser boa. É aquela que busca a felicidade. Não pode achar, na sua infrutífera procura, o que não existe. Desiste. A desilusão faz com que ela queira ser a parte má. O nosso eu bom e o nosso eu mau se amam, mas se rejeitam. O bom é quem quer matar o mau. Mas o mau só está no seu papel, tornando-se o indesejado, quem nos faz ter pesadelos e nos acorda quando sonhamos os sonhos de felicidade realizada. O eu mau deve estar à margem do convívio humano, preso em uma ilha solitária de rotas perdidas.
Há ainda o meu universo solitário que inventa pessoas irreais, refletidas em um espelho mágico. Um pequeno universo. Há a teoria dos físicos: o grande Universo é um só; o que nele vemos contido é só seu reflexo, por isso ele também é finito. Saber que até mesmo o Universo terá o seu fim consola a dor que o medo da morte me causa. Esse Universo tão misterioso pra humanidade, também tem seus espelhos refletindo as irreais imagens que enganam: estrelas que já há milhões de anos deixaram de existir e, ainda assim, mantêm-se suas cintilâncias. Nossos corpos, organismos, mentes... réplicas do grande e finito Universo. Somos também seu reflexo? O que existe nele existe em nós. E até essa Natureza Universal, que é criadora e criatura, irá morrer.
Não sei se alguém já disse o que acabo de pensar e disser. ...Sei que às vezes uso palavras repetidas. Mas, quais são as palavras que nunca são ditas?, disse o poeta naquela música... Como ela era mesmo? Todos pensam e quase sempre dizem o que pensam de uma forma ou de outra, já que há tantas formas de expressão e tantas mentes criativas. É preciso resgatar o valor das palavras. Até mesmo os que pensam em linha reta têm sempre os seus pensamentos propensos a se cruzarem com os dos outros. Caminhar em linha reta é pra quem tem objetivos. Eu não mais os tenho, perdi-me deles. Reafirmo: meus pensamentos não seguem uma linha reta com medo de serem pegos pelo trem do destino da minha própria história. A permanente tentativa de me esquivar da vida e da morte, ambas tão particular. Acumular energia para a fuga é engordar o corpo e a alma.
Eu já quis morrer! Mas como os meus pensamentos não seguem em linha reta, agora não estou mais querendo o que é provável, talvez inevitável: o encontro em um atropelo, antes da hora e local marcado, com o que chamo de duelo da minha vida contra a minha morte. Sem a contagem de passos, sem trapaças e nem uma só testemunha, mesmo que haja a assistência de gente curiosa. A morte não pode ser vista e muito menos vivida por outros, a não ser pelos dois protagonistas. Morrer é sair de cena. O último olhar é para o espelho. Reflexo: vulto que volta, antes de cairmos na densa sombra. Sermos esquecidos. Passamos a ser mais outra estrela morta com a energia da memória durando só mais um pouco. A morte desfaz o encanto do espelho, da vida. Aí os pensamentos ferem.
A meia idade torna os homens adolescentes. Não é por que cheguei nesta idade da inutilidade economicamente produtiva que penso e sinto da mesma forma a solidão. Mesmo com os anestésicos, tenho vivo o tesão no meu corpo! Entupo-me de remédios que só servem pra alma, pro vazio. O que fazer pra melhorar o gosto da vida? Quero um corpo colado ao meu, dentro um do outro e não fora! O homem ama o seu próprio pau! O seu feminino, o eu por ele não reconhecido, é o seu melhor amigo. O feminino no homem dimensiona a relação do macho com a fêmea. É o feminino inconsciente dele que busca o encontro com o masculino dela.
A memória só lembra o que quer lembrar. Quando jovem saia com os amigos, muita gente, encher a cara, som alto com o propósito de se tornar impossível as conversas...enfim, o resultado da excitante noite entorpecida: solidão. Pra que haja vida: sexo. Hoje, confesso, a solidão está mais intensa, insuportável até. Opressão. Minha casa vazia... a morte é a nossa casa. Pessoas se afastam quando nos revelamos. Quando ando pelas ruas as pessoas até esbarram em mim por simplesmente não me enxergarem. Elas nem me olham pra não terem que me ver. Tornei-me invisível como a perna que falta no saci. Mas, insisto com a coragem de andar em linhas tortas! Tenho ainda duas pernas e continuo a caminhar ziguezagueando pra todos os lados, tendo em mente a esperança que, talvez naquele lado, onde haja o tropeço, estará o meu destino. A ponta do meu arco-íris preto e branco sem tesouros. Só existe agora o tempo entre o passado e o presente.

Sérgio Janma -Jan/2012


"Deixando a água original
cantamos
sufocando o espelho
do silêncio"
(FONTELA).

AO ESPELHO - Jorge Luis Borges -
"ROSA PROFUNDA"

Por que persistes, incessante espelho?
Por que repetes, misterioso irmão,
O menor movimento de minha mão?

Por que na sombra o súbito reflexo?
És o outro eu sobre o qual fala o grego
E desde sempre espreitas. Na brunidura
Da água incerta ou do cristal que dura
Me buscas e é inútil estar cego.
O fato de não te ver e saber-te
Te agrega horror, coisas de magia que ousas
Multiplicar a cifra dessas coisas
Que somos e que abarcam nossa sorte
Quando eu estiver morto, copiarás outro E depois outro, e outro, e outro, e outro...



sábado, 21 de janeiro de 2012

Suicídio sui generis

...nada disso justifica.
O suicídio é apenas uma pseudo-libertação.
- Schopenhauer -

A velha garrafa térmica se escapuliu das minhas mãos, jogando-se ao piso de cerâmica. Dentro dela tudo se quebrou, havendo aprofundamento em seu dorso e o líquido no seu interior vazado. Estávamos, como sempre, só nós dois na cozinha. Morávamos sozinhos. Garanto-lhes que não fui eu! Por que a mataria? Não era nova e nem bonita, mas o que nela me importava era o conteúdo. Ela me dava de beber a pura cafeína que matava a sede do nosso amor matinal! Era a sua alma fervente... negra, eu sei, e depois, tão doce. Quando liberta, era sempre eu quem colocava doçura naquela alma e a sorvia. Garanto que foi isso que motivou o seu suicídio. Liberdade! Liberdade! Liberdade para uma alma cotidianamente sugada. Cansou de alimentar o meu vício matutino. Tinha vezes em que a procurava à noite, mesmo quando cansada dormindo no armário da cozinha. Perdíamos, então, o sono de tão excitados que ficávamos. Quando a oferecia aos outros, tímida, secavam-lhe rapidamente a alma do seu esguio corpo. Oferecia-lhe nem sempre só aos amigos. Vejo agora o quanto isso lhe era humilhante, vergonhoso e até promíscuo. Servida de mão em mão, de boca em boca, bebiam-lhe o que era o seu sangue, densamente negro. Devia sentir-se perseguida e sem alternativa de fuga.
A garrafa não era dessas novinhas e nem antiga demais pra ter sido de Aladim. Mas ela satisfazia os meus desejos. E não eram só três desejos, não! Ela me vinha inteira, cheia. Disponível o dia inteiro pra dela me servir. Mostrava-me sua obsessiva necessidade de eu sempre lhe provar, de ter que me agradar.
Afora a busca por liberdade, não acho motivos convincentes pra esse suicídio. A menos que ela fosse ciumenta! Talvez num impulso de raiva ou para chamar a atenção. Sentimento de abandono do seu parceiro. Se o era, nunca demonstrou. Fui-lhe infiel, confesso. Bebia cafés, nem sempre com o mesmo prazer por ela oferecido, nos bares, padarias e repartições públicas. No meu trabalho traía-lhe em todos os dias úteis. Àquela garrafa térmica nova sempre exposta na copa, tentadora... como resistir àquele apelo! Trazia-me pausa ao desprazer de ser obrigado a fazer trabalhos meramente sistemáticos. Amante que, igual a todas, servia-me apenas pra eu relaxar, desestressar, acompanhar-me nas conversas frívolas com os outros colegas. Situação sempre vivenciada às pressas, às escondidas, vá que o chefe flagrasse minhas assíduas visitas à copa!
Mesmo assim, não acredito que o suicídio tenha sido pelo meu necessário assédio às garrafas amantes. Provavelmente, seja pelo fato de que, nos últimos tempos, ela vinha sentindo-se em estado de muito vazio. Eu passava a maior parte do dia fora, saindo muito cedo, não tendo tempo pra preencher o seu interior. Resolvia-me na rua.
Numa tentativa de se livrar dessa extrema aflição e desejo de escapar do sofrimento intenso da depressão, não viu outra coisa a fazer. Quebrar-se completamente por dentro, liberando-se do seu próprio vazio.   
E agora, sem aquele doce café cafeinado, socorro-me àquela outra garrafa esquecida no úmido porão. Tem que ser tinto, seco e com a temperatura ambiente.































Sérgio Janma – Jan/2012

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

CANTADA FRUSTRADA – Cláudia Fleig Mayer –


- Meu doce, meu bem, por favor,
Vamos... vamos fazer amor?
- Não meu benzinho, eu lamento,
Mas só depois do casamento.
-Você não nota que não dá?
Para eu agüentar até lá?
- A vontade não é só minha:
Prometi para a mamãezinha.
-Isso até parece piada...
Pena que não é engraçada!
-Verdade amor, e di go mais:
Jurei casar virgem aos meus pais.
- Só que não vejo nenhum nexo
Nessa idade viver sem sexo!
- Lembre: perder a castidade
É um passo para a maternidade.
- Isso não chega a ser motivo:
Vamos usar preservativo!
- Não! Sei que é legal, mas não quero.
Não tenho pressa e espero.
- Não queira me levar a mal...
Mas sexo é fundamental!
- Esse papo está deprimente.
Já disse que não! Não me tente!
- Por que não devemos fazer
Algo que só nos dará prazer?
- Você sabe que eu gostaria,
Só que em outra hora, em outro dia!
- Afinal, se você me ama,
Que mal há em irmos pra cama?
- Já disse que não! Que não dá!
Depois do casamento, tá?
- Nem um motivo eu vejo
Prá desperdiçar o desejo.
- Não faço! Não quero! Desista!
Vamos casar, seja otimista...
- Só que eu não entendo.
O que está acontecendo?
- Benzinho... Não posso fazer...
Tente ao menos... me compreender...
- Mas não vejo motivo válido...
Credo! Como você está pálido!
- Confesso: não tenho ereção!
Entende agora a situação?!
- Assim não há santo que agüente!
Três horas cantando um impotente!!!

* Essa é da metade da década de 80. Redescobrir esse diálogo feito por Cláudia F. Mayer nas minhas pastas antigas.




domingo, 1 de janeiro de 2012

O amor... se não, por quê?


Amor... não o compreendo de tão imensurável em mim. Quando acaba, me consome a pergunta: por quê? Não tenho forças para lutar contra o que está ausente. Como enfrentar um inimigo que já não mais existe?
Sérgio Janma

O amor acaba

Paulo Mendes Campos

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Fonte: O Amor Acaba - Crônicas Líricas e Existenciais - Editora Civilização Brasileira - organização e apresentação de Flávio Pinheiro