"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Um tempo cinza irremediável

Em frente ao prédio sobre pilotis: 12h45min. Quinze minutos antes do QUASE-GRANDE-ENCONTRO marcado. O homem-porteiro anuncia meu nome via porteiro-eletrônico. No elevador, aperto o botão dois. Em menos de dez segundos a porta do elevador se abre ao meio. Tenho medo de andar pelo corredor daquele andar escuro. Não acho o interruptor que interrompe a escuridão. Sem que eu igniçasse nenhuma ação, acendem-se as luzes. Fiat Lux. De repente, vejo-me exposto num palco iluminado. Com ilusões ainda por se perderem, me visto com tênis e, para aumentar minha brincadeira de querer ser ainda adolescente, brinco de ônix na orelha esquerda. Pressionando um dos meus pulsos, o relógio a medir freqüência de tempo nas grossas ondas da lenta maré sanguínea. Na cabeça, essa louca touca a esquentar as minhas adquiridas ilusões de palhaço.
Antes de eu fazer a campanhinha soar din-don-din-don, a porta se abre após o olhar no olho através dela, magicamente. O homem é verticalmente alto e de uma magreza mística que sugere ser o seu corpo um templo zen. Revela-se igualzinho às suas aparições na tevê e nas fotos em jornais e revistas: veiazinhas azuis em seu nariz de perfil grego e queixo grande com furinho na ponta.
Pareço ser o discípulo Gorki em visita ao seu grande mestre Korolenko. Nosso PRIMEIRO-GRANDE-ENCONTRO. Confirmando apresentações prévias, trocamos nossos nomes, acenos-de-cabeças e signos. Ele, Virgem, eu, Sagitário.
- Entra. – Sua voz grave, barítono, convida. – Fica à vontade. - É magro, mas tem a voz gorda, pondero espirituosamente, achando graça do que penso.
- Tá tudo uma bagunça. - Desculpa-se. No sofá para dois, ajeita as almofadas para que eu acomode as dores de minhas costas e vai à cozinha. Sento. – Levantei agora. Quer um cafezinho? Tá novo... Passei a noite inteira trabalhando na revisão do meu novo livro. Tá pronto... Acabei de passar. Na verdade, é cevada. Vomitei muito durante a madrugada, depois de chorar por, depois de sonhar com. Ana Cristina César, conheceu? Minha amiga que tecia poesias e... morreu de... Aceita? - Não sei se convém. Afinal, acho melhor café do que cevada, quase digo. – Aceito, mas confesso que a cafeína é meu único vício. – Soa minha voz em pura indelicadeza ingênua.
Esticando seu longo pescoço até a porta da cozinha para a sala, mostra a sua cabeça de cabelos ralos e pergunta: - Gosta de açúcar mascavo? – Respondo que sim. Tudo tão natural. – Quantas colheres? – Duas e meia. – Determino. Na realidade, costumo colocar até quatro colheres de açúcar cristalizado nas minhas tinturas de café.
- Há dois dias fiz uma cirurgia nas gengivas, - anuncia, ao chegar à sala equilibrando as xícaras sobre os pires. – por isso não posso beber nada muito quente.
A cocaína corroendo as cartilagens, deduzo, porém não chego a dizê-lo.
- Acho o teu texto mais louco aquele que conta – jogando o foco da luz sobre ele - a estória de doze pessoas loucas, presas em uma casa cercada por cachorros loucos.
Concorda: - É dele que mais gosto. Mas foi um parto difícil. Teve vezes de eu ter que sair às ruas, impulsionado por personagens torturados que precisavam respirar. Levaram-me às festas, bares... Um zumbi conduzido por estes personagens que ganharam vida com meu corpo. Fizeram-me caminhar chorando compulsivamente, até que a noite me abraçasse para. – Deu com os ombros.
Senti não sei bem o quê com estas revelações. Talvez um tipo de medo ainda não catalogado. E tentando me equilibrar naquela corda-bamba que se mostrou ser a sensibilidade do meu novo amigo, antes que destoasse, dissimulo, retomando o controle do remoto assunto: meu desejo de montar seu texto, adaptando-o para a linguagem do teatro.
- Imagino que deve tê-lo escrito em circunstâncias especiais. – Supus, quase compreensivo. Divaguei em mais suposições. Falei e falei com prazer. Com atenção descansou seus olhos grandes sobre mim. Interessou-se. Passei-lhe segurança no que dizia. Passou a confiar em mim pelo o quanto eu conhecia e dominava o seu texto. Passei então a perceber que havia caído em sua graça, quando começou a me passar dados sobre e em que condições o conto foi escrito.
- É. Comecei a escrevê-lo a partir daquele poema do Henrique do Valle, “Uma Flor Num Buraco de Calçada”, conhece? O poema fala em cachorros loucos, chá de ervas do campo e solidão.
- Em um momento empaquei. – Revela. – Parei. O conto ficou engavetado até que me veio às mãos o “Poema de La Saeta”, de Federico Garcia Lorca: “Cirio, candil/ farol y luciérnaga/ La constelación/ de la saeta/ Ventanitas de oro/ tiemblan/ y en la aurora se mecen/ cruces superpuestas / Cirio, candil/ farol y luciérnaga.” Aí, deslanchou.
- Sabe a qual signo pertence cada personagem? – Querendo saber se eu havia matado a charada.
Como eu vinha experimentando corporalmente o seu texto nas oficinas de teatro, começo logo a ditar os nomes e os signos, alguns deles revelados pelos seus arquétipos. Ele conferindo e eu acertando. Faltaram quatro que nem mesmo ele lembrou. Vai até ao quarto dizendo resolver tudo em um instante. Agora sou eu quem estica o pescoço, conseguindo ver as estantes que fazem daquele quarto algo parecido com uma biblioteca.
Volta de mãos dadas com o seu livro.
- Assim fica mais fácil desvendar todos os seus mistérios. – Exibe a capa, igual a um pai mostrando a cara do filho que muito lhe orgulha.
Abre o livro e, folheando, com algumas leituras chega a quem pertencem os signos que sobraram. BINGO!
- E a Décima Terceira Voz? - Pergunto, como se tivesse caído uma maçã sobre minha cabeça, despertando-nos de repente das considerações que fazíamos. – Ela é fragmentada. – Relembro. – Vem de um personagem não corpóreo, etéreo, ou não, já que tem a cabeça raspada. Raspada por quê?! É uma pessoa louca em uma instituição psiquiátrica? Artaud? – Continuo com minha metralhadora de perguntas que mais parecem respostas. – É Obaluaê? (Oba- Lua- Ê, fica melhor assim?). É o mais provável por ele jogar búzios. – Pondero. - Ou, ela mesma, a Décima Terceira Voz, seria uma personagem? – Questiono, por fim.
- Taí... Gostei. A Décima Terceira Voz tem a ver com tudo isso. – Concorda, dando por suspenso o assunto.
- Bom, já que sou um virginiano com um pé fincado no meu ascendente escorpião e o outro em capricórnio, onde está a minha lua, vou arrumar esta sala.
Ajudo-o. Levo as duas xícaras vazias até a cozinha e as lavo. Da sala ele grita alguma coisa como estar morando só.
Faxina pronta. Ele volta ao quarto para trocar de roupas. Cruza sem camisa pela porta aberta. Vejo um sinal em seu ombro esquerdo. Provavelmente de nascença. Será que é dali que sai a sua luz?
Veste roupas básicas, aciona a secretária eletrônica e me pergunta se tá tudo em cima. Estava.
Saímos pela única porta de entrada-e-saída daquele pequeno apartamento de apenas um quarto. A porta batida às nossas costas se fecha com violência própria. Produzindo som seco que mais me pareceu flecha percorrendo, de cima para baixo, cada uma de minhas vértebras. Senti um frio na espinha. Arrepiei. Porta que o futuro confirmaria se fechar permanentemente para mim.
Passando à minha frente, no corredor novamente iluminado, ele caminha bambo. Pernas longas tentando equilibrar a tenra saúde do corpo e as tonturas da cabeça.
– Esqueci de te perguntar: - lembra. – Qual é o nome do teu grupo? – “Talento... Acelera!” – Respondo em só fôlego.
Encaixotados no elevador social espelhado ao fundo, apenas nós dois somos quatro. Pergunto à sua imagem embaçada no espelho, desde quando mora em Sampa. Respondeu-me, olhando diretamente ao real de mim, que mora esporadicamente, entre idas e vindas de viagens a trabalho, desde 68. De lá pra cá, um tempo no Rio de Janeiro e uma volta a Porto Alegre. No começo de 73 viajou para Europa. Em Estocolmo, foi lavador de pratos e garçom, em Amsterdã, desempregado. E em Londres trabalhou como “cleaner”, lixeiro e modelo de belas artes e fotografia.
- É! Estava, digamos... “ahippieando”. – Brinco com sua resumida biografia. Entendeu, mas não achou tanta graça.
Na rua, eu pelo lado de dentro, ele pelo lado de fora da calçada, como se estivesse responsabilizando-se por minha segurança. Irmão mais velho protegendo o irmão mais novo das ameaças da cidade grande.
- Gosta de comida natural? Tô te levando para um restaurante que só serve isso.
- Há um ano que faço macrobiótica. – Minto esta meia verdade, já que pelo menos em três noites na semana vou às pizzarias me intoxicar.
Chegamos.
Sentados à mesa, um em frente ao outro, sugere que eu escolha o cardápio. Leio como se lê a um dicionário. Escolho. Arroz integral, abóbora, verdura, suflê de chuchu. Ele revela ser o sushi o seu prato predileto... Só que aquele não é um restaurante japonês.
Enquanto a comida não vem, ele pede duas águas de côco que são prontamente servidas in-natura. Por mais esforço que ele faça a água não sobe. Chama o garçom e pede que seja trocado o seu canudo quebrado. Trocam, quando o meu côco verde está seco. É a primeira vez que bebo água de côco.
Chegam os pratos.
- O que querem beber? - Pergunta o garçom a ele que, olhando-me, transfere a mim a escolha. - Água mineral com gás. - Desculpe-me, mas aqui não servimos mineral com gás. – Responde a mim o garçom.
É claro, estamos em um restaurante só de coisas naturais. Água com gás natural não é água gaseificada, penso em retrucar.
Calamos.
Passamos simplesmente a contemplar a imagem do silêncio.
A falta de assunto ameaça a pesar indigesta sobre a mesa. Cinqüenta mordidas nos alimentos a cada vez em que se enche a boca. Incômodo silêncio das nossas mastigações até eu lhe falar (com a presunção própria dos meus vinte e poucos anos): - Também escrevo. – Digo-lhe isso quase que naturalmente, só não o sendo por tão rápida a frase ter saído de minha boca. Como se eu fosse obrigado a me livrar destas duas palavras que me queimavam por dentro. – É quando – prossigo - exorcizo a angústia, diluindo-a até que navegue endovenosa, para fora de mim. Mas na contramão ela volta insistente, como uma diasfixia. É aí, então, que as frases ficam aflitas por um ponto final. – Ele me olha com um olhar interessado. Continuo. - As pessoas ao lerem o que escrevo, acham-me original por usar uma cadeia-de-palavras-que-estão-em-torno-de-uma-mesma-idéia-ou-sentido. Às vezes sou até monofrásico. Utilizo-me também do meu próprio neologismo. Mas digo a elas que não estou sendo original, apenas sigo o estilo Caiu Fernando Abreu de escrever.
- Uma amiga minha- novamente amiga sua - disse que a criação nunca é original. No máximo recolhemos os lixos da arte e os somamos, resultando numa recriação. Já leu Ulisses? – Pergunta à queima roupa.
- Não... - Constrangido por não saber de quem se tratava, indago: - O quê Ulisses escreveu?
- Nada. Ele é que foi escrito por Joyce. James Joyce. – Assume um ar professoral. – Ulisses é o divisor. Existe a literatura antes e a depois deste livro que até hoje é a bíblia dos escritores pós. Em respeito à sua língua mãe, Joyce não assassinou a gramática inglesa, sendo o irlandês que era. Mas com maestria mudou tudo, ultrajando com rigor a ortografia e a morfologia das palavras. Uma obra que conseguiu, apesar do estilo inovador, tornar-se clássica. Recomendo a leitura.
Por causa da cirurgia feita em suas gengivas, não quer sobremesa. Também não quero, por respeito às minhas aftas.
Vêm, por fim, os chás. Maçã para mim. Para ele, banchá, condizente ao perfeito xamã que gosta do gosto das folhas antigas. Prefiro chá de jasmim, penso. Não peço. Não teria. Aquele, definitivamente, não é um restaurante japonês.
Vem a conta. Me coço. Fala que sou seu convidado. Paga com cheque e conversa animadamente com a moça operadora do caixa, mostrando o quanto é assíduo àquele ambiente gastronômico.
Conversamos sobre o possível futuro imediato dos nossos trabalhos, medindo a calçada com nossos milimetrados passos sem pressa.
Uma nuvem cinza carregada de chuva se apressa a armar-se sobre as nossas cabeças.
Chegando a Avenida Paulista, paramos. Abraçamo-nos com bastante ternura. Nosso abraço, humano, ecoa por muito tempo em todo o coração financeiro do país.
Começa forte a chuva, arrastando pelos esgotos as flores náufragas que começávamos a regar.



Sérgio Janma
Outono de mil novecentos e oitenta e sete.

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