"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

sábado, 22 de setembro de 2012

Passarim


  Chamava-se Pardal. Claro, isso não é lá nome de ninguém. E ninguém jamais soubera o seu nome. Pardal era a alcunha daquele homem de idade incerta e indecifrável que parecia mais um pinto molhado. Estava mesmo sempre molhado pelas recorrentes chuvas invernosas do sul, quando menos, empapado por tanta umidade.
            Viera do Mato Grosso antes da divisão do estado, região de menores precipitações molhadas. Nem os mais íntimos, se são possíveis intimidades com um morador das ruas, sabiam o que motivou a migração desse raro pássaro do Centro-Oeste para o Sul do país. Estava sempre com frio, fazendo com que alguns até apostassem que ele viera pousar em Porto Alegre para simplesmente morrer de frio.
           Pardal era Pardal. Ou melhor, não era assim chamado por ser fauna do Pantanal Mato-grossense, mas por uma clara alusão ao Prof. Pardal dos gibis. Consertava, com os poucos instrumentos que trazia consigo na cintura, tudo o que era aparelho elétrico e eletrônico, suas especialidades. Dava luz à um prédio inteiro e, quiçá, à uma usina elétrica em apagão, tamanha era sua força criativa e inteligência. Um gênio, mágico. Bruxo.
           Pardal ganhou proteção de um amigo em comum que o acolheu em seu local de trabalho. Tornaram-se grandes amigos. Eu nem tanto, mas presenciava impressionantes cenas reveladoras, a exemplo das tentativas de Pardal em manter uma conversa em inglês com o meu amigo. Pardal falava fluentemente a língua britânica, já seu interlocutor nem tanto. Tá certo que atrapalhava o entendimento da língua sua fala acelerada. Acelerado ele era apenas pra falar, devo assim pontuar essa sua característica. Acho que o falar atropelando o português e igualmente o inglês, espanhol, italiano e o alemão, era efeito do alto consumo que ele fazia da cafeína. A substância acelerava apenas as articulações responsáveis pela fala. Se bem que não dá para desconsiderar que ele poderia ser assim por algum acidente de trabalho, alterando a velocidade da geração elétrica em seu cérebro. Ou a razão ainda poderia ser a de algum defeito congênito... Vai saber.
            Apesar de sua fala apressada, Pardal não falava muito. Era mais de ouvir e ver tudo. Assim como soubera silenciar o seu passado em Corumbá, também não reproduzia verbalmente o que seus olhos assistiam e ouvidos captavam. Carregava essa virtude em sua personalidade como coisa aprendida por uma duradoura vida dura. Estava ali e nem o notávamos. Tinha esse poder de se tornar invisível. Silencioso chegava, cumpria as tarefas da faxina e do passar café, bebia copos cheios para se certificar que estava bom, ali ficava, dali saía, silencioso.
            Quanto ao seu vestir, devo salientar que suas roupas eram exclusivas, melhor dizendo, eram de seu uso exclusivo, visto que jamais as tirava do corpo. É assim que me vem à lembrança esta figura ímpar. Fisicamente miúdo, dava-me a impressão de estar sempre molhado, como já disse, igual a um pinto. Imagem formada com ajuda dos seus cabelos escorridos de índio. Não era muito novo. Junto aos cabelos pretos, alguns brancos. No rosto de maçãs chupadas e de barba rala, apontavam mais fios brancos do que pretos. Dentes? Faltavam-lhe a maioria e os que restavam eram todos pretos escondidos na escuridão da sua boca. Mal se mostravam quando Pardal franca e abertamente ria. Há que se considerar que os moradores das ruas não têm facilidades no costume da higiene bucal, carentes de uma simples e diária escovação dos dentes.
            Tempos passaram, fui morar em outra cidade, outro país mais trópico, e nunca mais tive notícias de Pardal. Isso até a madrugada de ontem, quando ainda dormindo profundo me veio um sonho pesado, golpeando-me com a notícia sobre o seu destino. Não viera em sonho o anjo da anunciação Gabriel ou algum outro enviado com a notícia de vida brotando. Quanto muito poderia ser Morfeu me mostrando as únicas coisas que são reais: vida e morte; esta depois da outra.
             Mataram Pardal!
       Na cama, acordado sem acordar, nocauteado, pensava em tudo sonhado sem exatamente o que pensar.
Crime executado da forma mais cruel. Fora cometido por crianças, mas não como se mata passarinhos pelas brincadeiras de estilingues e pedras. Nem Pardal também, afinal, era nenhum Golias ou alguma Madalena para quererem matá-lo às pedradas. Tampouco houve descuido seu em algum conserto elétrico de alta voltagem que o carbonizasse por dentro.
Não morreu de frio como se imaginava que em algum dia ocorreria.
Mataram Pardal...  não foi em um único ato. Ele começou a morrer quando nosso amigo em comum morreu antes, assim, sem combinar nada com ninguém. Sem amigos, Pardal voltou a dormir nas ruas. Como se não bastasse o frio das madrugadas que o matava aos poucos, vieram meninos, achando-se caridosos anjos da morte, intencionados em acabar com seu sofrimento. Traziam pela escuridão archotes e gasolina. Tudo fora cinematograficamente gravado pelas câmaras instaladas nos postes e nas marquises das lojas do centro daquela cidade. Ação assassina sem ensaios, marcações, apenas a obsessiva intenção.
Pardal dormia. Provavelmente sonhando que se passasse rapidamente mais uma noite para tomar gratuitamente seu café matinal na padaria da esquina. Que frio! Que frio! O frio passando, indo embora pra nunca mais. Calor... calor... que bom...esquenta-que-esquenta... não quero mais acordar. Nem dava mais tempo. Era calor que queima. Queimou as poucas roupas de lã, avermelhou e enrugou-lhe a pele, deu fim aos escorridos cabelos tomados pelo branco da idade e da geada. Magro, não demorou que o fogo lhe chegasse aos ossos. Tocha humana até virar carvão, vida em carbono.
Como os bruxos, Pardal morreu queimado com suas penas e sabedoria.
Ele era assim... digno de pena por esse seu jeito pássaro de ser.

 Sérgio Janma – 19.09.2012