"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Dragão Apunhalado Colhe Pedras na Lua de São Jorge

..."Já se perdeu, não há futuro. Repousa, meu amigo. Deixa-me passar a mão nos teus cabelos. Está amanhecendo. Em voz baixa eu canto para te enganar”.
                                                (Caio F. Abreu - Dodecaedro  - Triângulo das Águas, pág. 54).

                         Regresso ao passado. Início de julho de há dois anos. Nem sei bem o porquê, estou aqui, na janela onde o sol, recém acordado pelo perfume das acácias nas ruas, mostra a cara com olhos orientais maquiados de remelas. Onde está constantemente amanhecendo, dirias.
            Giro, dentro do miolo da fechadura, a única chave do chaveiro. Apenas uma volta. Empurro a porta e o meu pé direito no primeiro passo largo, único, abre-se para dentro da sala escura, chutando a revista deitada ao chão. Acendo a luz que vez em quando me falta. Abaixo-me e levanto-a com cuidado, pensando ter machucado alguma de suas páginas. Abro a revista semanal e deparo-me com a tua fotografia: cadavérico, de braços cruzados, muitas roupas de lã, cabeleira rala, óculos redondos envidraçando esse olhar grande que a tudo viu e viu tudo o que viveu.
             HIV.
            Estas três letras amontoadas em laboratórios estão sempre presentes na tua literatura. Esse vírus guardado no fundo escuro de alguma gaveta. É a face descoberta que precisas encarar. Tornaste-te escravo desse futuro evidente. Futuro assalariando no agora o teu passado.
            Pregado na ponta do teu nariz, como tatuagem, está o Sarcoma de Kaposi. Tipo raro de câncer. Todo câncer tem fome, deu no jornal da tevê. E morre se não for alimentado. Mas tu não gostas da fome de ninguém, não é?
            O tumor amadurece o vermelho-morango do teu nariz sempre empinado, mofando sua cartilagem até apodrecer. Nariz manchado, fazendo-te naturalmente palhaço. O maior, o verdadeiro PALHAÇO-DAS-PERDIDAS-ILUSÕES a dançar, dançar e dançar. E não sendo “O Palhaço”, de Gismonti, O-BOM-PALHAÇO-NÃO-CHORA-E-VAI-EMBORA-SEM-EXPLICAR.
           Somando-se a tua debilidade, vem outro vírus, o surto de Herpes-Zoster, atacando a pele e mucosas com inflamações que dão nos nervos. E em tua pele há também um fungo, istoplasma, transmitido pelos pombos dos telhados de Paris. Ou serão os pombos que não nos deixam pisar no chão da Praça Montevidéu, em frente à Prefeitura de Porto Alegre? É pra onde voltaste, eu sei. Qualidade de vida melhor do que a de São Paulo, dizes.
           Encaro novamente a tua foto colorida. Pálida tez. Chegaste ao teu limite. Os ossos vestidos apenas por tua pele. E a pele se vestindo de febre. Resultado natural da vida indevida de um Rimbaud. Naquela solidão suicida, tanto sexo sem camisinha, tantas drogas que em algumas vezes funcionaram como freios e, em outras tantas, como aceleradores químicos das emoções. Tantos bons sentimentos jogados no lixo.
           Penso na Aids. Também não gosto de sexo pasteurizado, muito menos virtual. Sexo passou a ser O-PÃO-NOSSO-DE-CADA-DIA-QUE-O-DIABO-AMASSOU.
           UNI-DUNI-TÊ... O-ESCOLHIDO-FOI-VOCÊ.
           Mas continua, sobretudo, tua sobrevida. Afinal, teu maior ideal é continuares sempre vivo. E é vivo que te sentes quando tentas salvar tua planta da felicidade, transplantando-a para um pequeno bonsai. Plantaste roseiras de rosas brancas para colheres luz. Teu ikebana muito bem arranjado te dá energia. Livre, tens teu nariz preso ao jardim. No terraço, conversas com as pequenas mudas que em silêncio ouvem tuas confissões e sinalizam-te compreensão com o verde de suas folhas novas e vistosas. E ainda ficas espantado vendo os narcisos se abrindo para o gozo do dia.
          Sem tesão, pelo baixo nível de testosterona a inibir a libido, o teu comportamento e atitudes tornam-se quase religiosos. Como se tu fosses um sacerdote de Odim, aplicas a fórmula da magia do DEUS-VENTO-NÓRDICO, mantendo pedras imersas em jarros de barro para que, criando-se limo nas suas texturas, elas cresçam iguais às plantas, apenas levando mais tempo. Afinal, pedras têm vida! E tu, dizes, não teres pressa, esperas, também és eterno.
           Agora vais arrebanhando as tuas Ovelhas Perdidas há tanto tempo naquele fundo escuro da gaveta. Tempo em que eras protegido por lobos, por teres a inspiração como sabedoria proibida. E ainda hoje reanimas teu clero de doze sábios, nas nove cavernas dos nove mundos ascendentes do Espírito. Dimensões onde é comemorado esse teu mistério que vibra com cada manifestação da natureza.
           Quanto a mim, sentado em minha sala-de-estar-só, vejo a tevê, sem nenhum volume, a jorrar cores fantasmas, trêmulas, no escuro deste inverno de hoje, daqui, deste lugar sem frio. Só, entre os poucos móveis e uma xícara suja, levanto-me e arrasto os meus pés até a cozinha para outro café forte. Três colheres e meia de açúcar cristalizado. O doce que engorda e cristaliza os vermes emaranhados em minhas vísceras.
           As lágrimas saltam-me compulsivas, convulsivas, jogadas para fora de minhas órbitas por sua insustentável leveza. Âncoras leves que me levam a aportar neste tempo, neste agora que está parindo o que virá.
           Penso em ti, naquele final de fevereiro do ano que passou. Vejo-te parando de respirare com suspiros desesperados. Era domingo, Oxalá veio te buscar. E aos toques nos atabaques dos ogãs, a luz das tuas rosas brancas vestiu-se do luto da noite. Fizeste a travessia, já tonto no final.
          Estás agora sozinho nessa NOITE-DE-LUA-NOVA. Conseguiste. Acendeste tuas próprias velas. Descansa. Não sentirás mais febre, nem insônia. A tosse não vai mais bater em teu peito e rasgar tua garganta, impedindo que respires profundo.
          Em teus dias de verão, sentiste sob as tuas costas a pedra morna pelo sol. E agora tens sobre ti a pedra fria pela sombra da morte.
          Ultrapassaste o teu limite: a nudez dos ossos. Desvestindo-os de tua pele como se tirasse uma capa de chuva, um sobretudo. Deixes que a lama PERGUNTE AO PÓ. O pó virá. Depois virá a lama, o pântano, onde reina Nanã, o vento que eventua a destruição e... novamente o pó. As tempestades desabadas, desaguadas por Yansã, lavarão o teu avesso. E descerá a paixão através dos raios ardentes dos guerreiros tontos de prazer mórbido.
         Teu Exu Pessoal ausentou-se e agora voas com o vento para atravessares o CENTRO-DA-CURVA-DAS-TORMENTAS, ajudado por teu pai Ogum que te levará a nado pelo Oceano de Astros até ao Alto da Torre.
         O corpo, que te serviu como crisálida, vomitou os teus sentidos fraturados, juntamente com a tua alma aquecida, suada. Paraste de te debateres. Provaste da terra, agora é a vez do vôo. Teu momento agora é o de seres borboleta para abrires calor sobre o caminho que atravessas nesse “deserto de almas também desertas...”.
          E Shiva dança, enquanto cria para ti um novo mundo.
          Entrelaçando os meus cílios, fecho as lágrimas, a torneira, a porta, a janela, a cortina, o piano, os punhos, os ouvidos, a boca, o zíper, o corpo, a tampa... Fecho o livro (e tudo nele para sempre escrito) nesse fundo escuro da gaveta para sempre fechada.



Sérgio Janma


 

2 comentários:

  1. Lindo texto. É triste. O que é triste também é belo. E isso é engraçado. Mas o texto não é cômico. É triste e belo. E nos leva a pensar, a refletir... faz a gente passar a vida a limpo... Gostei muito...

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    1. Que bom que você gostou, Rosa Melo. Escrevi este texto comovido por uma tristeza e por muita poesia. Uma tentativa de homenagear Caio, quem pra mim compunha textos extremamente poéticos.

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