"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

“De Bode” se Aproveita até o Couro


         Olhei, gostei e pedi. Quero aquela cabra! Não é cabra, moço, é bode, reponde a simpática moça do Mercado. Hummm... isso não estava nos meus planos. Por uma questão de gênero, cabia mais uma cabra pra minha solidão do que um bode. Meço o bicho cinco vezes com a palma da minha mão direita. Acho que tá de bom tamanho pra o que eu quero. Serve. Por quanto me vende? 45 reais. Reponde-me categoricamente. Pago a vista, digo com bocão. Não tem nenhum descontinho?! Pechincho. Já tá na promoção, não demora já não tem mais, demonstrando não ser afeita à prosa labiosa. Desajeitado, desatolo as cédulas da carteira e a entrego com certo pesar por não ter obtido resultado que me fosse favorável na barganha. Enrola o bode num papel grosso de embrulhar pão. Coloco-o embaixo do braço. Tenho neste momento a nostálgica lembrança de, quando menino, ao voltar do armazém do seu Elói, beliscava o quentinho pão sovado de 500g, transportado embaixo do meu sovaco.
            Mas voltemos ao bode. Devo não ser faltoso com a verdade e dizer que as coisas não foram bem assim, como até agora aqui por mim narradas. Comprei um bode, sim, mas não tão inteiro... assim, na sua integridade física. Faltam-lhe alguns elementos corpóreos que o impede de ser um ser integral, total na sua plenitude de vida física. Obtive-o sem carnes para que não se corasse do sangue que também não tinha, sem ossos para mantê-lo em pé e ereto, que nem mais pés para correrem tinha, nem músculos para deixá-lo resistente e forte, sem garganta, língua e voz pra grunhir socorro, ou pra que aos berros me espantasse pra longe. Esse bode, indefeso, não tem nem cabeça pra me chifrar pelas costas.
   O que, enfim, levei pra casa foi apenas o seu belo couro de pelos ralos e vistosos.
            O couro desse bode me terá muita utilidade. Atenderá algumas de minhas necessidades mais urgentes. Primeiro o pregarei na parede do meu quarto, logo acima da cama, onde fica o buraco da caixa do ar condicionado que não instalei. Solução estética, já que o bloco de gesso com o qual fechei, destoa em textura e cor do restante da parede. Claro que num quadro foi a primeira coisa em que pensei para pregar sobre o gesso, sobre o buraco, mas quando me informei dos preços... Não tenho vocação pra colecionador das artes plásticas! Pensei em um tapete. Deve ser tão caro quanto. Reconheço que o couro de bode foi a solução mais inteligente e barata que me veio a calhar. E não é de todo “politicamente incorreto”, não! Esse bicho foi provavelmente morto pra matar a fome de muita gente em estado de inanição, ou não, talvez  apenas em selvagem comilança festiva. É a lei de Darwin! Nada mais providencial. Restou-me dele o seu couro.
            Mas a questão premente não está no buraco da parede. Está em um buraco qualquer dentro de  mim que não consigo sequer identificá-lo pra fechar... estancar o que lhe sai de dentro. Sinto-me desaçoreando. A vida se esvai feito sangria de rio... até a fossa. Até a solidão. Tô mesmo “de bode”! Expressão que dita em tempos passados, faria todo o sentido. Quero crer, preciso crer que o simples couro de um animal morto já não identificando o sexo que teve em vida, faça companhia à minha solidão. Então, aceito, resignado, na sua inerte companhia passiva, que ele seja o meu bode de estimação. Meu companheiro, minha paixão póstuma. Cúmplice mudo do que vivermos juntos. Desde que fixo na parede, sobre minha cabeça “de bode”.        


Sérgio Janma – dez/2011


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