"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

sábado, 10 de novembro de 2012

Esqueceu-esse-é-meu




      Essa ouvi do meu vizinho do lado, “Seu” Neves, homem pacato, sério, mas muito conversador. Conta histórias nas quais sempre ele é o protagonista. Disse-me ontem, enquanto estávamos sentados os dois na calçada, que já foi vigilante do Sindicato dos Servidores Terceirizados do Estado. Único homem de confiança e amigo do então presidente daquela associação, segundo ele. Contou-me ele que a inusitada história teve seu início quando da compra de um cofre para auxiliar no controle do fluxo de caixa daquela agremiação. Na medida em que se aumentava o quadro de sindicalizados, maior e mais complexa ficava a sua movimentação financeira. Diante da necessidade frequente de saques ao caixa da agência bancária, ficara inviável se custear os gastos diários da entidade e até mesmo os pagamentos semanais à prestadores de serviço. Foi então que a diretoria decidiu comprar um cofre para reservar-se o dinheiro suficiente para esses custeios. O cofre comprado foi devidamente instalado na parede da sala da presidência, sobre a janela, por trás de uma extensa e grossa cortina escura que tinha como principal função ocultá-lo. 

      Após o saldo verificado, o saque foi autorizado pelo gerente do banco. Em lugar reservado pela agência, ficou “seu” Neves, único homem de confiança do chefe, a conferir uma contagem de R$150.000,00 em cédulas de 100 e 50 reais na sua maioria e umas poucas de 20 e 10 reais para o sindicato dar os seus trocados. Sem levantar suspeitas, o vigilante saiu do banco chegando logo ao seu destino sem nenhum atropelo. Em um momento solene com apenas três presentes, o presidente Reginaldo, o tesoureiro Zaqueu e o vigilante “seu” Neves, o dinheiro foi devidamente aprisionado no cofre, cela de valores e muitos segredos. 

      No dia seguinte haveria na sede do sindicato uma reunião de dirigentes regionais afins. Esse evento programado nas vésperas criou a necessidade de se tomar medidas de última hora. A mais importante de todas fora a viagem naquela noite à vizinha cidade do Recife, a fim de promover exaustivas reuniões para tratativas de assuntos sigilosos a serem repassados na reunião do dia seguinte. A urgência das ações a serem tomadas pelo presidente daquela associação fez “seu” Neves, único homem de confiança, ser o veloz motorista para a tal viagem. 

      O sindicato então precisou contratar às pressas para aquela noite um vigilante folguista. Missão que coube ser cumprida por “seu” Neves, devendo ser muito criterioso na sua escolha por quem iria substituí-lo na insone função que exige de quem a exerce extrema responsabilidade. Sem precisar pensar muito se lembrou de Pudim, veterano das guerras etílicas, hoje um sóbrio aposentado beirando os seus setenta anos. O velho Pudim haveria de quebrar o galho em vigiar só por uma noite os valores e patrimônio daquela organização de trabalhadores. 

      Pudim, muito responsável, estava no sindicato dez minutos antes da hora marcada, exatamente às 18h50min. Até às 21h nada fora do normal. A essa hora Pudim já tinha comido o jantar deixado pra ele na geladeira, dispensando a sobremesa, não por achar proibitivo comer seres da mesma espécie, mas mais por não gostar de doces em geral. 

      Na sua vigília, Pudim certificara-se de estarem todas as portas fechadas para a sua ronda pelo lado de fora. Mesmo tendo vista curta pela idade, o velho olhava tudo com muito vagar e atenção para compensar a escuridão que se fazia nas ruas. Não tendo visto nada de suspeito que merecesse uma atitude mais repressiva de sua parte, o velho voltou para o interior da sede pela porta dos fundos. Para a sua surpresa, Pudim na sua mais lúcida sobriedade vê vultos de homens aparentemente bombados na sala da presidência. Quem são vocês?! Como entraram aqui?! O quê tão fazendo nessa sala?! Foram as perguntas não respondidas no interrogatório feito pelo assustado e mole Pudim. Silêncio. Antes que o vigia por ocasião voltasse com sua metralhadora de perguntas desnecessárias, no primeiro Ei! por ele dito, veio de um dos homens em tom raivoso a ordem de Fique peixe, seu velho desgraçado! Não vai calar esta boca?! Vou te encher de porrada! 

     Pudim levou tanta bordoada que se estatelou ao chão, ali ficando na forma condizente ao seu codinome, assistindo os três brutamontes fazerem o rapa no cofre ainda virgem de arrombamentos. 

       Dia amanhecido, Pudim com a cabeça devidamente enfaixada retornou do Pronto Socorro a tempo de ver alguns policiais vasculharem o local do crime. Os homens com coletes de Polícia Técnica vez em quando se olhavam e abanavam negativamente suas cabeças. Até que o delegado chama à parte o presidente daquela entidade e sentencia que a polícia não seguirá em frente com aquela investigação se não houver a denúncia do furto. Como assim?! Por que furto? Indaga o sindicalista. Foi assalto! Assaltaram o nosso cofre na primeira noite depois de instalado! Assaltantes roubam de assalto, senhor. Explica o policial. O caso aqui foi mesmo furto, já que quem roubou tinha as chaves. Constatamos essa evidência por não haver nenhum arrombamento nas portas e janelas, as quais estavam invioladas. Recomendo que o seu sindicato faça uma sindicância. Tenha um bom dia. 

      Dos três que tinham as chaves e sabiam do depósito de R$150.000,00 em dinheiro vivo no cofre, só se encontravam dois no local após o crime, o presidente e “seu” Neves. Um não desconfiava do outro e o outro não desconfiava do um. Sem ensaios, o olhar teatral de ambos, de imediato e ao mesmo tempo, foi em direção ao ainda tonto Pudim. 

      Não se fez denúncia e nem sindicância alguma. Deixou-se tudo como estava. Foi mais fácil e conveniente sugerir-se que Pudim, em sua ávida sede, teria bebido da água que passarinho não bebe, esquecendo-se do seu voto de abstinência, e posteriormente também esquecido as chaves na porta da frente da sede do sindicato. Desde então, o pobre e injustiçado Pudim não foi mais chamado pra substituir qualquer vigilante que precisasse faltar ao serviço nessa cidade. 

       Mas o mais intrigante desse fato segredado a mim por “seu” Neves, diz respeito ao tesoureiro Zaqueu que apareceu só três dias depois do ocorrido roubo, alegando ter morrido seu tio mais querido de nome Lázaro Neto, na distante cidade de Manaíra. A repentina morte do adorado tio o atormentou tanto que acabou por esquecer-se de avisar que faltaria a tal reunião do sindicato, devendo ficar alguns dias com seus inconsoláveis familiares. Porém, “seu” Neves sabia que Zaqueu tinha sido há dois anos tesoureiro da campanha para a reeleição de um popular deputado estadual, na qual também desapareceram alguns milhares de reais, enquanto, coincidentemente, era velado e enterrado um tio seu de nome Lázaro Neto na cidade de Manaíra. 

      O dissimulado tesoureiro, segundo “seu” Neves, estava tão confiante que acabou por simplesmente esquecer que o tal tio, oportuno álibi, ele já havia matado em outras ocasiões. 

       Tudo aconteceu exatamente assim, é o que “seu” Neves me garante de pés juntos mesmo sem ter morrido. Esse é o meu vizinho, único homem de confiança daquele sindicato de honestos trabalhadores. 



Sérgio Janma – 10/11/2012


            

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