"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

sábado, 17 de novembro de 2012

Às Costas do Anjo de Costas



Conto requentado apresentado no Clube do Conto em 17/11/2012          

       Gabriel Solís, mercenário. Colecionador de orelhas inimigas, mortas. Orelhas, com seus lóbulos furados pela ponta de uma baioneta, alinhadas num colar. Duas voltas e meia de orelhas, engrossando ainda mais seu pescoço, já o tendo tornado grosso por seus constantes esforços em gritar para chamar a atenção sobre si. Usa as orelhas também para ser ouvido? Nunca vi meu amigo usar o colar com tais orelhas empalhadas. Talvez seja só o fetichismo solitário de um serial-killer profissional, trazendo-lhe lembranças inconscientes do tipo escalpe, apropriadas ao sangue índio em suas veias latinas. Puro Inconsciente Coletivo antropofágico de um autêntico charrua. Isso se, é claro, os charruas fossem canibais.
         Seus cabelos lisos têm um lustro brilho. Natural. Como parece ser natural o sorriso, ou o não sorriso, que traz consigo em seus documentos falsos. Sem o falso sorriso na foto 3/4, onde sério e de olhos arregalados, mostra suportar valentemente o estrangular da gravata tentando afinar-lhe o pescoço.
         Conheci Solís em Porto Alegre, num frio final de junho, na metade dos anos 80. Um tempo em que tudo era quase democrático. E era democrático ter que ouvir, naquele frio cortante, a fumaça de sua voz. Vapor sonoro saindo da fossa quente de sua boca. A voz modelada era quase navalha arremessada, metálica, para fora de suas outras fossas, as nasais. Fio de som agudo perfurando o ouvido de minha viva orelha-esquerda-de-nódulo-furado-como-o-próprio-brinco-de-ônix. Por este ouvido esquerdo que me chegam os sons mais altos, já que pelo outro não ouço direito.
         Sua voz cortava o ar frio, arrepiando mais do que as sanguinárias bravatas das estórias que depositava nos meus ouvidos, sarcasticamente narradas com mórbidos detalhes.
         Solís, conta ele, lutou em guerras alheias em missões terroristas. Às vezes paraquedista, outras vezes fuzileiro... Também sendo lanceiro de tudo o que se lança e é morteiro.
        O visionário poeta fala alto e estridente, enquanto vai picando com punhal de prata marroquino o fumo que diz ser cubano, tal quais os charutos Hoyo de Monterrey que também os fuma nas horas em que precisa ser sofisticado. Isso quando não cala sua pequena boca no cachimbo filosofal, por nobre opção tabagista. Chama de filosofal o seu cachimbo por tê-lo comprado na Grécia e servido às pedras de ópio chinês. E assim, ocupa-se, entre um charuto e outro cachimbo, da paz deste novo tempo que se esvai em improdutiva conversa monologa recheadas de ações.
        Além do punhal, também é de prata quente a bomba do seu chimarrão. Cotidianamente, em horários apropriados, vai cevando o verde pó dessa amarga erva. Chia a chaleira no ritual quase santo. Chaleira cigana e erva guarani. A sensação é a de limpeza da alma ao beber aos poucos aquela água quente com cheiro e gosto de mato, esquentando por dentro e esverdeando a língua. Limpeza prolongada para depois do ronco da bomba no fundo da cuia, quando a água esverdeada seca. Seus fantasmas mutilados, tanto os antepassados quanto os de hoje, chegam-se para a próxima rodada de mate amargo, servido pela própria deusa Caá-Yari* já com a erva quase inteiramente molhada.
       Matador vocacionado que é, acredita em deus e... no diabo como sócio do divino na messiânica tarefa de executar os sacros serviços sujos. Para Gabriel, depois da criação de tudo o que seria proibido ao Homem conhecer, deus descansou no sétimo dia, ficando o diabo em seu lugar. Folguista de deus, o deus-suplente fez-se também criador nesse dia. Conheceu-se então, o verdadeiro Sétimo Céu. Lugar onde se esconde o titereio que manipula as cordas das marionetes no Reino Universal de Deus.
         Tornando-se adepto à religião que professa ser deus um só quarteto, Gabriel vê no diabo a cara escondida e suja de um deus esquizofrênico. Sabe ele que na dança do Kabuki e no Teatro Nô, encantatório ideograma japonês com seus dois mil e quinhentos gestos simbólicos e gritos guturais, vêm sendo secularmente mostradas as diversas máscaras dos deuses e demônios. Máscaras que os atores, sacerdotes telúricos, usam-nas como convém, apropriando-as a cada situação criada para a inocente condição da natureza humana.
         Este homem, Solís, carrega o nome do Anjo Gabriel sobre sua cabeça batizada por aspersão e untada por benzidos óleos. Na cabeça também carrega muitas lembranças de mortes sem nomes, pesando-lhe a consciência.
         Noutro dia, ao final de uma tarde fria, Gabriel Solís fez sua aparição na Casa do Poeta. Vinham atrás, rebocados, sua mulher brasileira e o casal de filhos pequenos. A esposa prendada montava-se de prenda em seu vestido de chita e o rosto rebocado de ruge e batom. Ele, pilchado a rigor. Iriam à festa junina de S. João com as crianças embrulhadas em panos quadriculados, fantasiadas de tabuleiro de xadrez. Noite de São João, pular fogueira, comer pinhão. Beber quentão para enrubescer de calor as faces. Ele gaudério, ela chinoca.
         Vira eu o taura amansado pelo amor da família. O homem Solís redimiu-se com deus e o diabo, passando a confundir-se com o anjo não apenas no homônimo.
         A admiração por seu homem era flagrante no olhar daquela mulher. Nos seus olhos, a constante espera pela surpresa prometida ao destino do marido que, vez em quando, misterioso viaja clandestino para ver sua mãe no Uruguai.
        Solís. O marido, o pai, o filho e espírito desarmado de santo, ou anjo. Gabriel, solícito guardião da paz, da vida e da morte dos seus e seus destinos.
        Chega a ser impróprio para si esse tão óbvio, evidente e claro destino negro de anjo, quase lenda. Certamente, criação divina.

*Caá-Yari: deusa da erva-marte e protetora da Raça Guarani.


Sérgio Janma




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