"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Não tô nada bem!


Não tô nada bem!
 (1º Lugar na Categoria Conto do 8º Concurso Literário Mário Quintana do Sintrajufe/RS em âmbito nacional)

     Cheguei sem pressa dez minutos antes do marcado. Sentado na cadeira de tecido, fico entre o cochilo e a vigília. Tô até paciente demais. Até porque SOU UM PACIENTE! Já tô medicado e não ofereço perigo algum. Raiva humana não é transmissível através de salivosas mordidas... creio. Mas quando salivo de raiva, sei não, minha baba pode contaminar. Não agora, aqui nesse consultório, onde espero o tempo passar e, nessa passagem dele por mim, desembarque a psicoterapeuta que aguardo e, espero me olhe como alguém que apenas não tá nada bem. Vai ser difícil convencê-la do meu estado adverso, depois de ter feito uso, receitados, de 2 mg de Rivotril e uma cápsula inteira de 75mg de Venlaxin. Drogas legais que me deixam mais legal, mais domesticado que muito animal que necessita de coleira. Ainda não necessitei dela, mas andei perto de precisar pedi-la emprestado ao vizinho do lado, tão zeloso com seu estimado cãozinho.
                A recepcionista, pensando que eu estaria me importando com o atraso, informa que a “doutora” não demoraria, estava a caminho. Continuo absorto no meu semi-cochilo. O quê dizer à “doutora”? Não sei e nem quero saber. Vai depender do que ela me perguntar e eu quiser revelar. Mas quer saber?! Tô numa boa, de bem com a vida, sob o efeito dessa paz medicamentosa. Então, vou dizer tudo! Tudo mesmo. Minhas vivências dos vinte recentes anos.
                 Ela entra. Surpreendo-me a ponto de despertar da minha morgação. Ela não é simplesmente uma “doutora” qualquer. É UMA MULHER! Eu já sabia que seria atendido por uma psicoterapeuta mulher. Cruel foi não terem adiantado os seus requisitos femininos! Na recepção deveria ter no quadro de avisos o informe de suas características físicas, uma foto seria melhor, pra que ninguém despreparado feito eu, fosse surpreendido no primeiro encontro. O aviso deveria ser assim: Neste santuário, atendimentos serão feitos por Vênus, ou se preferirem, Afrodite. Mas saibam que se trata da mesma pessoa que agrada a gregos e romanos. Ao contrário de uma justificada agitação, me mantive tranquilão, apenas mais esperto. Aquela beleza à minha frente faria qualquer moribundo em visita à ante-sala da morte, querer se agarrar à vida pra apreciar este paraíso feminino.
              Ela vai querer saber das coisas que sinto, penso, experimento, vivencio. A mulher mais interessante que já vi interessada por mim! Vai querer meu bem estar... vai querer me fazer feliz! Não quero mais a cura! Não quero alta nunca mais.
                 A conversa se inicia, após o educado pedido de desculpas pelo atraso. Tenho que falar de mim pra que ela melhor me conheça. Falo com bastante vagar pra também conhecê-la melhor. Falo tudo o que me vem à cabeça pra encompridar a conversa, enquanto observo-a em todos os detalhes. Olhos no olhos, de vez em quando. O que vejo é o todo. Vejo-a toda. Cabelos claros, pele clara, membros proporcionais de uma falsa magreza... e os claros olhos pra ver claramente o que exatamente quer. Quer cuidar de mim.
                Vejo suas mãos. Só consigo ver a tez e perceber que elas estão sobrepostas. Aliança? Não a vejo e pouco importa se há algum ornamento anelar. Os dedos já servem de enfeites àquelas mãos que imagino macias. Isso me basta. Assistir a uma beleza acima do trivial já traz prazer aos meus sentidos fragmentados.
                 Então tá. Semana que vem nos encontramos, mesmo dia e horário. Até lá o lerdo tempo será meu pior inimigo. Tempo que vai me lembrar a todo o instante que NÃO TÔ NADA BEM!
                    Não sou religioso, mas nos dias de nossos encontros, terei 50 minutos pra minha adoração.

Sérgio Janma


2 comentários:

  1. É Sérgio...dizem alguns que somente a possibilidade ,cura.Outros dizem que no outro há sempre ume spelho e que somos diferentes, quando desejamos.Belo conto! Beijo grande

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  2. Só tenho que aceitar o que dizes, Adriana Bandeira, afinal, falas de cadeira... e divã.

    Grato,

    Sergio Janma

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