Chamava-se
Pardal. Claro, isso não é lá nome de ninguém. E ninguém jamais soubera o seu
nome. Pardal era a alcunha daquele homem de idade incerta e indecifrável
que parecia mais um pinto molhado. Estava mesmo sempre molhado pelas
recorrentes chuvas invernosas do sul, quando menos, empapado
por tanta umidade.
Viera do Mato Grosso antes da
divisão do estado, região de menores precipitações molhadas. Nem os mais
íntimos, se são possíveis intimidades com um morador das ruas, sabiam o que
motivou a migração desse raro pássaro do Centro-Oeste para o Sul do país. Estava sempre com frio, fazendo com que alguns até apostassem que ele viera pousar em Porto Alegre para
simplesmente morrer de frio.
Pardal era Pardal. Ou melhor, não
era assim chamado por ser fauna do Pantanal Mato-grossense, mas por uma
clara alusão ao Prof. Pardal dos gibis. Consertava,
com os poucos instrumentos que trazia consigo na cintura,
tudo o que era aparelho elétrico e eletrônico, suas especialidades. Dava luz à
um prédio inteiro e, quiçá, à uma usina elétrica em apagão, tamanha era sua
força criativa e inteligência. Um gênio, mágico. Bruxo.
Pardal ganhou proteção de um amigo
em comum que o acolheu em seu local de trabalho. Tornaram-se grandes amigos. Eu
nem tanto, mas presenciava impressionantes cenas reveladoras, a exemplo das
tentativas de Pardal em manter uma conversa em inglês com o meu amigo. Pardal
falava fluentemente a língua britânica, já seu interlocutor nem tanto. Tá certo
que atrapalhava o entendimento da língua sua fala acelerada. Acelerado ele era
apenas pra falar, devo assim pontuar essa sua característica.
Acho que o falar atropelando o português e igualmente o inglês, espanhol, italiano e o
alemão, era efeito do alto consumo que ele fazia da cafeína. A substância acelerava
apenas as articulações responsáveis pela fala. Se bem que não dá para
desconsiderar que ele poderia ser assim por algum acidente de trabalho,
alterando a velocidade da geração elétrica em seu cérebro. Ou a razão ainda poderia
ser a de algum defeito congênito... Vai saber.
Apesar de sua fala apressada, Pardal
não falava muito. Era mais de ouvir e ver tudo. Assim como soubera silenciar o
seu passado em Corumbá, também não reproduzia verbalmente o que seus olhos
assistiam e ouvidos captavam. Carregava essa virtude em
sua personalidade como coisa aprendida por uma duradoura
vida dura. Estava ali e nem o notávamos. Tinha esse poder de
se tornar invisível. Silencioso chegava, cumpria as tarefas da faxina e do
passar café, bebia copos cheios para se certificar que estava bom, ali ficava,
dali saía, silencioso.
Quanto ao seu vestir, devo salientar
que suas roupas eram exclusivas, melhor dizendo, eram de seu uso exclusivo,
visto que jamais as tirava do corpo. É assim que me vem à lembrança esta figura
ímpar. Fisicamente miúdo, dava-me a impressão de estar sempre molhado, como já
disse, igual a um pinto. Imagem formada com ajuda dos seus cabelos escorridos
de índio. Não era muito novo. Junto aos cabelos
pretos, alguns brancos. No rosto de maçãs chupadas e de barba rala, apontavam
mais fios brancos do que pretos. Dentes? Faltavam-lhe a maioria e os que
restavam eram todos pretos escondidos na escuridão da sua boca. Mal se
mostravam quando Pardal franca e abertamente ria. Há que se considerar que os
moradores das ruas não têm facilidades no
costume da higiene bucal, carentes de uma
simples e diária escovação dos dentes.
Tempos passaram, fui
morar em outra cidade, outro país mais trópico, e nunca mais tive notícias de
Pardal. Isso até a madrugada de ontem, quando ainda dormindo profundo me veio um sonho pesado, golpeando-me com a notícia sobre o seu destino. Não viera em sonho o anjo da anunciação Gabriel ou algum outro enviado com a notícia de vida brotando. Quanto muito poderia ser Morfeu me mostrando as únicas coisas que são reais: vida e morte; esta depois da outra.
Mataram Pardal!
Na cama, acordado sem acordar, nocauteado, pensava em tudo sonhado sem exatamente o que pensar.
Mataram Pardal!
Na cama, acordado sem acordar, nocauteado, pensava em tudo sonhado sem exatamente o que pensar.
Crime executado da forma mais cruel. Fora cometido por
crianças, mas não como se mata passarinhos pelas brincadeiras de estilingues e
pedras. Nem Pardal também, afinal, era nenhum Golias ou alguma Madalena para
quererem matá-lo às pedradas. Tampouco houve descuido seu em algum conserto
elétrico de alta voltagem que o carbonizasse por dentro.
Não morreu de frio como se imaginava que em algum dia
ocorreria.
Mataram Pardal... não foi em um único ato. Ele começou a morrer
quando nosso amigo em comum morreu antes, assim, sem combinar nada com ninguém.
Sem amigos, Pardal voltou a dormir nas ruas. Como se não bastasse o frio das
madrugadas que o matava aos poucos, vieram meninos, achando-se caridosos anjos
da morte, intencionados em acabar com seu sofrimento. Traziam pela escuridão
archotes e gasolina. Tudo fora cinematograficamente gravado pelas câmaras instaladas
nos postes e nas marquises das lojas do centro daquela cidade. Ação assassina
sem ensaios, marcações, apenas a obsessiva intenção.
Pardal dormia. Provavelmente sonhando que se passasse
rapidamente mais uma noite para tomar gratuitamente seu café matinal na padaria
da esquina. Que frio! Que frio! O frio
passando, indo embora pra nunca mais. Calor... calor... que
bom...esquenta-que-esquenta... não quero mais acordar. Nem dava mais tempo.
Era calor que queima. Queimou as poucas roupas de lã, avermelhou e enrugou-lhe a
pele, deu fim aos escorridos cabelos tomados pelo branco da idade e da geada.
Magro, não demorou que o fogo lhe chegasse aos ossos. Tocha humana até virar
carvão, vida em carbono.
Como os bruxos, Pardal morreu queimado com suas penas
e sabedoria.
Ele era assim... digno de pena por esse
seu jeito pássaro de ser.
Sérgio Janma – 19.09.2012
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