"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

sábado, 10 de março de 2012

Na cor e na dor, o cinza é o tom



I

Sua alma está débil. Não ousa ousar. Pedem-lhe paciência. Garantem-lhe ajuda. Pergunta, como? Ainda não. A resposta ainda não está preparada. Ela existe no futuro, não vem agora. É como aquele jogo... aquele... juntam-se as peças para formar a figura. Quebra-cabeças. É só pensar no onde-quando-como aconteceu e elaborar o trabalho de juntar os fatos aos sentimentos e terá a resposta. A cabeça quebrada... não consegue pensar, dói. Sente sua alma contida por uma maldição, diluindo-a até o tornar um nada. Da sua memória só brotam lembranças das lágrimas que dos olhos não escorrem mais.
Espera...
Lembra-se da casa, dentro dela pessoas felizes. Levezas, distrações. Não! Não vêm só isso à sua memória. Essa história terminou de outro jeito. Começaram as ausências, as dores, os odores... aquela doença. Uma praga com o poder de matar o amor-na-saúde-e-na-doença. 
        Era só como um carnaval, estonteante. Passou. O amor dela passou para outras mãos que, mais seguras, foram mais gentis. Um rio encontrando o seu mar.
            Na casa, agora, um homem só. Num verão recém-começado, no início de sua longa noite.
            Talvez ele consiga. Tem o amor daquelas que dele precisam. Criancinhas que o esperam exigem sua presença. Não pode ir. Elas não andam sozinhas. Ele não reconhece os próprios pés. Não aprendeu a ser uma pessoa inteira. Desconhece quem foi, por negar-se a si mesmo. Como ele ser presente à elas sendo só fragmento?
            Precisa sair mais com os amigos. Ir ao cinema. Também ao teatro para ver peças com textos densos de tantos questionamentos sobre a arte de saber viver. Precisa ter mais cuidado com seu novo nascimento. Por enquanto, ainda é um delicado feto que precisa de delicadezas nos cuidados. O tempo vai cuidar dele dentro de si, feito um cavalo-marinho prenhe, com suas contrações insuportáveis. Mas que tempo é esse?, instável, às vezes o sol é uma grande brasa lhe enrugando a pele antecipando-lhe a velhice, noutras, canta-lhes trovões e o tempo quase o afoga em tempestades. Traz-lhe calor, quase nunca o frio. Ele esperava que esse seu tempo fosse, pelo menos, cronológico. Mas ele tem sido sempre relativo. Demora mais nos momentos de tristezas e nos de raras alegrias... nem prazer dá tempo de sentir. Quer nascer, sair deste umbral e ficar longe do escuro Hades, onde tudo é obscuro. Só não quer nascer no mesmo lugar, com a mesma gente, mesma vida, no mesmo tempo... não mais voltar a andar sem destino pelo meio dos lixos gozosos da alegria dos outros.
            É de manhã. O tempo deixou o dia à sua porta.

II

           Sabe ele que túnel é esse por onde se contorce, provocando movimentos que o impulsionam para frente. Túnel que faz a ponte entre o final de um tempo e o início de outro. Vida e morte são eventos tão parecidos... não, acha que se trata de uma coisa só, cara-e-coroa. Uma única porta. Abre-se para a vida; fecha-se para morte. Será?! Ele considera a possibilidade da inversão, dependendo de que lado se esteja, do que representa este movimento semicircular da porta. Serão, então, duas possibilidades ao abri-se a porta do umbral: vida para morte; morte para a vida. Questiona-se, na sua loucura, se em todos esses anos o que de fato lhe carregou foi o morrer, não havendo vida que a pudesse chamar de sua?
          Não! Não quer ver! Aperta com tanta força seus olhos que começa a ter visões orbitais coloridas. Agora vê que o tempo ainda não se perdeu de si mesmo. Num abrir e fechar sincronizado do túnel serpenteado, ele se sente como comida a ser vomitada. Depois do fechar, no abrir vai sendo lançado como pedra no estilingue, projetado em concordância com a lei física da balística.
Sente abandono ao encarar o aproximar-se da revelação do que ainda lhe é mistério. O outro lado ainda não visto da porta. Até agora tudo lhe era escuridão, disso ele sabia ser necessário. A luz só vem se houver o escuro. Pensa que não vai conseguir. Sente medo. Pede perdão a todos os deuses afros e descendentes por pecados que nem sabe ao certo os ter cometido. Por onde andará seu pai Ogum com suas estradas?! Vê se aproximar da Curva das Tormentas! Tangendo-a, dentro dela a torna e a contorna com esmero contorcionismo. Já consegue perceber lá fora certa agitação para a sua acolhida.
           Está fora?... do tempo e seu túnel? Agora, fora de..., continua a busca de si... qualquer um si, não precisa ser o próprio. Continua a querer ver com alguma nitidez o que não via quando dentro, agora estando fora. Graças aos mitos, ainda tem alguma memória. Em ásana respira, busca e alcança o parir seu próprio nascimento.
           Por enquanto, vê-se em outra cidade que lhe é nova. Senta-se na terra úmida e fria. Sente-se só. Não vê naquela cidade uma viva alma. Venta um forte e sonoro vento a misturar tudo o que derruba: galhos e folhas, pedras e terras, flores e polens, sementes e... a terra úmida já estava preparada para esse momento. O momento do nascimento dele. Ele, ali, sentado naquela esquina, sua esquina, no abismo onde venta mais forte. Vento misturando suas histórias de vida com os papéis ainda em branco. 

III

       Foi longa a espera. Nada mudou, a não ser o exterior em que habita. As dores da alma continuam. Quis outro destino. Quer voltar. Diz que tudo não passou de um grande engano. Não há como abrir a porta do destino de dentro para fora. Ele fez esta escolha com seu preço a pagar.
Agora tem uma casa, outra casa. E um cachorro muito grande, coberto de pelos pretos. E nos olhos do cão a cor de sangue. Fez-lhe uma casa canina junto ao portão para que ninguém entre. Ensinou ao animal a só comer corações e fígados na farinha, regados com azeite de dendê e mel. Deu-lhe o nome de Exú. Inútil. O cão, preso por correntes, não deixa ninguém entrar. Mas quanto aos sentimentos eles vêm e vão, assim, como visitantes fantasmas. Despertam-lhe emoções que lhe são insuportáveis! Trazem-lhe desejos... vão-se embora e os desejos ficam. São só desejos e por isso ele sofre mais. Não quer os desejos apenas como companhias tristes feito ele e que, não podendo satisfazê-los, sua angústia e inquietação aumentam sua loucura carente de sanidade e amor. É aí que ele deixa Exú entrar na casa.
Bombeando tanto sangue para o interior de seu coração, derramando-se... encharcando-o. Rompendo os caminhos endovenosos, o sangue lhe sobe à cabeça, como uma transposição de rio. E o corpo se rasteja de tanta carência. Resta-lhe apenas lamentar ser sua dor tão insuportável.


IV

Lembrou-se que sabia dançar. Não se lembra como e com quem aprendeu os movimentos coreográficos. Mas havia beleza nos seus gestos ritmados pelo seu coração percussivo. Como alento, veio-lhe a lembrança como esperança: Shiva dança. O movimento de sua dança no espaço provoca mudanças no Universo. Eterna re-criação da vida. A dança interfere no espaço da vida. Basta que faça essa interferência ser ao seu favor, pensa ele. Um voo sem queda. Rasteiro. Como uma brincadeira... tão lúdico. Sentir todas as sensações possíveis de prazer e seus riscos nas piruetas. Cair é o maior risco pra quem se arrisca a dançar tão intensamente. Mas ele sabe, provou, que a vida só é vida se for intensa, sem o medo do ridículo que representa em se ser feliz. Dançar traz liberdade. Com movimentos soltos do corpo regido por uma alma livre, pode-se subir colinas, pular muros... obstáculos da vida que se pretende não ser cotidiana.
Ele agora dança com mais entrega. Entrega-se a si, ao universo e ao próprio espaço novo que criou. Não se importa com (e nem sente mais vergonha) as cicatrizes que o denunciam que esteve lá, na Grande Cidade das Almas Vazias. O seu Quase Encontro com a punição da sua condição humana. Achou que não a merecia e percebeu-se sem medo. Foi então que decidiu dançar, dançar e dançar até que a vida voltasse pra dentro da sua vida, através do seu corpo desperto aos prazeres.
Decidiu que sua vida seria sempre rodopios tontos de prazer. Viver no lugar criado por sua dança, onde só há o amanhecer.

Sérgio Janma




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