Morreu no
hospital naquela manhã. Morte conhecida e esperada, sem chegar a acordar para
o novo dia. Não precisou de autópsia. Se precisasse a dificuldade seria grande. A autópsia seria trabalhosa pela grandeza corporal daquele homem. Teriam muita
massa pra serrar e tecido adiposo pra queimar. Trabalho ele deu à família, ou melhor, a uma amiga de longa
data, quase irmã. Os parentes, apesar de serem muitos, não eram dados às
intimidades dos toques físicos, ainda mais numa situação dessas, tocar um ente querido defuntado. Sobraram pra a amiga sempre solícita e aos auxiliares de enfermagem e
maqueiros as árduas tarefas do derradeiro banho e o de vestir aquele volumoso corpo pesado de gorduras. Metros acima, abaixo e lateralmente, o homem era grande horizontal e
verticalmente. Três auxiliares, dois maqueiros e a pobre frágil mulher não
conseguiam levantá-lo daquela cama de ferro. Decidiram, então, rolá-lo para a
maca estrategicamente colocada ao lado e o conduziram ao frigorífico daquele
hospital.
A liberação daquele corpo ainda mole pelo IML não foi demorada. Isso, talvez, por ser ele uma
pessoa notória e popular naquela cidade. Bem nascido no berço de uma família
tradicional, tinha situação financeira contrária ao status social
herdado. Demora teve em se encontrar algum caixão que lhe servisse bem,
deixando-o confortável para todo o sempre. Assim como existem lojas de
vestuários para pessoas de corpos avantajados, a família descobriu (depois de um
tempo de pesquisa no Google) que havia na cidade uma casa funerária
especializada em oferecer produtos desta natureza, ou seja, caixão que daria
pra uma família de sem teto morar.
No meio da tarde
do mesmo dia, o defunto devidamente trajado de terno e gravata estava instalado em seu berço definitivo a contemplar a
eternidade do seu fim. Alguns familiares e amigas íntimas beijavam aquele rosto
de constante sorriso duro, maquiado com pó de mármore. Não era mais corpo de gente. Parecia um tétrico
boneco. A cara de pau beijada sem nojo pelos que o amavam. Um dos amigos mais íntimo vaticinou em uma roda de poucos amigos que aquela condição das carnes do rosto do falecido, era a concretização do que ele era em vida: um grande cara de pau! Homem de gargalhada fácil, fanfarrão, decidido
a viver só o que lhe desse prazer da maneira mais egoísta. Filhos, ele os
tinha, mas não os queria, era muita responsabilidade e perda de liberdade. Sua
vida financeira era instável. Com sua potente voz rouca fazia alguns shows
aqui, música ao vivo em um barzinho acolá, em sua casa e nas casas dos amigos também cantava. Naqueles tempos até ganhava um bom
dinheiro, mas nas vacas-magras, sua mulher, professora, segurava as pontas.
Já se aproximava
o horário do enterro tratado com a administração do cemitério público da cidade
e nada de chegar o seu melhor amigo que, de
férias, viajava de carro por outro estado, quilômetros
e quilômetros de distância. A um amigo em comum coube a desconcertante missão
de avisa-lo da morte. Ao atender o celular a notícia lançou-se sem nenhum Oi
sequer: O Bola morreu! O quê?! Me liga daqui um minuto. Vou parar o carro no
acostamento.
E o amigo nada
de atender mais o celular. Bateu e pegou fogo o carro que dirigia chocado com a notícia à queima-roupa? Sabe-se que nas estradas mineiras é onde se registram o maior número de acidentes. A mãe do amigo enfim tranquilizou a todos dizendo que ele ligou informando já estar na Bahia. Implorou que o guardassem, era necessário o seu último olhar, último beijo,
últimas lágrimas. Já se aproximava das 19:00h de um enterro previsto para às
16:00h e nada do amigo aguardado chegar para a despedida. Passada mais meia
hora ele chega, cumprindo o ritual esperado em uma situação dessa, não esperada.
E o caixão enfim foi erguido pelos seus quatro filhos presentes e mais dois
irmãos. Outros dois irmãos não compareceram, uma irmã, a Luisa que estava no Canadá e o
caçula, com quem ele não se dava muito bem. O
cortejo iniciou-se em adiantada hora e seguiu pelas ruas de uma cidade
escurecida pela noite sem lua e mal iluminada pelos postes públicos.
Os portões do
cemitério ainda se mantinham abertos às 20:00h dada a importância para a cidade
daquela personalidade morta. A cova era cavada devagar, próxima a alguns metros do portão principal do cemitério, na passarela central.
Endereço privilegiado daqueles que são da elite. Os dois coveiros não tinham pressa,
queriam aproveitar os seus 15 minutos de fama, percebendo os holofotes das
tevês, flashes dos repórteres e as presenças ilustres das autoridades locais.
Tempo suficiente para a mãe do morto, já idosa, gritar aos prantos coisas
do tipo: Deus, por que não levou a mim?! Por quê ele, meu filho mais
querido?! Bola, meu Bolinha, volta! Volta!!! Deus, me leva junto! E jogava-se teatral para cima do imenso caixão.
Caixão e seu
conteúdo içado e depois arriado como um cargueiro de velas aportando no cais. Cova profunda que guardaria pra eternidade um corpo sem mais sentido e sentimento, terno, roupas elegantes e calçados de couro fino. As flores e lágrimas jogadas por cima da terra que há de comer. Os coveiros ajustaram a tampa da cova e
cimentaram o fim da vida, das velas e do velório. Funeral findo. Choro em silêncio por aquele inerte
produto final de uma vida que agora viaja na Barca da
Morte, guiada por rezas e regras.
Sérgio Janma – 05/05/2012
*Tema do Clube do Conto para esta data.
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