"Leia como quem beija, beije como quem escreve"
(Maxwell F. Dantas)

sábado, 21 de janeiro de 2012

Suicídio sui generis

...nada disso justifica.
O suicídio é apenas uma pseudo-libertação.
- Schopenhauer -

A velha garrafa térmica se escapuliu das minhas mãos, jogando-se ao piso de cerâmica. Dentro dela tudo se quebrou, havendo aprofundamento em seu dorso e o líquido no seu interior vazado. Estávamos, como sempre, só nós dois na cozinha. Morávamos sozinhos. Garanto-lhes que não fui eu! Por que a mataria? Não era nova e nem bonita, mas o que nela me importava era o conteúdo. Ela me dava de beber a pura cafeína que matava a sede do nosso amor matinal! Era a sua alma fervente... negra, eu sei, e depois, tão doce. Quando liberta, era sempre eu quem colocava doçura naquela alma e a sorvia. Garanto que foi isso que motivou o seu suicídio. Liberdade! Liberdade! Liberdade para uma alma cotidianamente sugada. Cansou de alimentar o meu vício matutino. Tinha vezes em que a procurava à noite, mesmo quando cansada dormindo no armário da cozinha. Perdíamos, então, o sono de tão excitados que ficávamos. Quando a oferecia aos outros, tímida, secavam-lhe rapidamente a alma do seu esguio corpo. Oferecia-lhe nem sempre só aos amigos. Vejo agora o quanto isso lhe era humilhante, vergonhoso e até promíscuo. Servida de mão em mão, de boca em boca, bebiam-lhe o que era o seu sangue, densamente negro. Devia sentir-se perseguida e sem alternativa de fuga.
A garrafa não era dessas novinhas e nem antiga demais pra ter sido de Aladim. Mas ela satisfazia os meus desejos. E não eram só três desejos, não! Ela me vinha inteira, cheia. Disponível o dia inteiro pra dela me servir. Mostrava-me sua obsessiva necessidade de eu sempre lhe provar, de ter que me agradar.
Afora a busca por liberdade, não acho motivos convincentes pra esse suicídio. A menos que ela fosse ciumenta! Talvez num impulso de raiva ou para chamar a atenção. Sentimento de abandono do seu parceiro. Se o era, nunca demonstrou. Fui-lhe infiel, confesso. Bebia cafés, nem sempre com o mesmo prazer por ela oferecido, nos bares, padarias e repartições públicas. No meu trabalho traía-lhe em todos os dias úteis. Àquela garrafa térmica nova sempre exposta na copa, tentadora... como resistir àquele apelo! Trazia-me pausa ao desprazer de ser obrigado a fazer trabalhos meramente sistemáticos. Amante que, igual a todas, servia-me apenas pra eu relaxar, desestressar, acompanhar-me nas conversas frívolas com os outros colegas. Situação sempre vivenciada às pressas, às escondidas, vá que o chefe flagrasse minhas assíduas visitas à copa!
Mesmo assim, não acredito que o suicídio tenha sido pelo meu necessário assédio às garrafas amantes. Provavelmente, seja pelo fato de que, nos últimos tempos, ela vinha sentindo-se em estado de muito vazio. Eu passava a maior parte do dia fora, saindo muito cedo, não tendo tempo pra preencher o seu interior. Resolvia-me na rua.
Numa tentativa de se livrar dessa extrema aflição e desejo de escapar do sofrimento intenso da depressão, não viu outra coisa a fazer. Quebrar-se completamente por dentro, liberando-se do seu próprio vazio.   
E agora, sem aquele doce café cafeinado, socorro-me àquela outra garrafa esquecida no úmido porão. Tem que ser tinto, seco e com a temperatura ambiente.































Sérgio Janma – Jan/2012

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